terça-feira, 11 de março de 2008

Somos o que lembramos

Antônio estava para comemorar 45 anos e se considerava um homem realizado. Ele era um diretor de uma multinacional, tinha três filhos que eram igualmente bem sucedidos e ele casara com a garota mais bonita da faculdade.
No dia de seu aniversário, ele acordou assustado. Ele estava em uma cama estranha, em uma casa estranha, no meio de gente estranha. Apavorado, correu para a rua, tentando achar o caminho para sua casa, mas não reconhecia a rua, nem a vizinhança e o pavor o deixou na certeza de que não estava mais em seu bairro. Seu primeiro pensamento foi: sequestro!
A explicação parecia bem racional e lógica. Aquela vizinhança parecia muito com o subúrbio, nas regiões mais carentes e afastadas da cidade. Aquela gente parecia ser pobre, vivendo de bicos ou com certeza de furtos, se não do tráfico de drogas. Ciente de sua situação, foi tentar negociar sua libertação com seus captores.
Ele não conseguia entender aquelas pessoas. Ele, que se orgulhava de falar fluentemente inglês, francês, alemão e italiano, não entendia aquela gente. Mas eles não pareciam violentos, ao menos não viu nas mãos deles arma alguma nem recorda ter acordado amarrado e vendado, como seria de costume, pelo que ele lembra dos noticiários.
Com muita dificuldade, ele entendeu que eles queriam que os seguisse a algum lugar. Ele então raciocinou: claro, eles querem que eu negocie com o chefe do bando. Assim, com algum esforço, ele voltou à casa onde ele havia acordado, tomou o café da manhã que lhe ofereceram, tomou banho e se vestiu com as roupas que lhe deram. O matinal oferecido estava horrível, não tinha gosto nem de café, nem de leite, não tinha os cereais que ele tanto gostava e certamente aquela roupa era ridícula e brega demais para seu bom gosto.
No momento de ir com eles, mais surpresas desagradáveis. Ele teve que entrar em um veículo de marca ignorada, em péssimo estado de conservação e completamente sujo. No caminho, tentava inutilmente reconhecer alguma coisa, alguma referência, ou esperava passar por algum policial.
O local em que ele foi levado estava quase caindo, mas ainda era possível ver uma cruz vermelha na parede parda imitando branco. Ali devia ser alguma clínica, mas não compreendia porque o chefe desse bando estaria ali. O jeito foi sentar-se em um sofá cuja aparência e limpeza conseguiam ser pior que o assento do carro.
Uma hora depois, veio um homem alto com um jaleco puído pedindo por várias lavagens com cândida, com uma prancheta na mão e um estetoscópio pendurado no pescoço. Antônio supôs então que seus algozes o haviam levado ao médico para se assegurarem primeiro de sua saúde para então pedir um vultoso resgate . O médico dizia algo enquanto olhava ora para a prancheta, ora para Antônio, mas igualmente o que dizia era incompreensível. O médico trocou algumas palavras com seus carcereiros e só então passou a falar de forma inteligível.
- Senhor Pedro, o senhor deve estar confuso e desorientado, mas creia-me, o senhor está seguro.
- Que? Oh, não, deve haver algum engano. Meu nome é Antônio, eu não moro aqui e não sei quem são essas pessoas.
- Não há engano algum, senhor Pedro. O senhor sofreu um sério acidente após o qual o senhor, de forma misteriosa para nós, manifestou uma certa fixação por essa personagem Antônio, do filme que o senhor viu na noite anterior ao acidente.
- Que? Eu sei quem eu sou! Como ousa! Eu sei meu endereço, meu telefone de cor! Ligue para meu serviço, ligue para o clube, ligue para meu advogado!
- Lamento, senhor Pedro, mas isso é uma ilusão. Veja, aqui estão os dados que o senhor nos deu e eis as plantas da cidade de onde o senhor disse morar. Não existe tal endereço, não existe tal número de telefone, não existe tal empresa.
- Mas... mas... mas... isso é impossível!
- Infelizmente é possível, senhor Pedro. O senhor se tornou uma personagem de filme porque esta era sua memória, sua lembrança mais vívida antes do acidente.
O médico pôs então, em um aparelho de DVD, um filme que mostrava em seus 120 minutos de projeção uma imagem que sintetizava boa parte do que Antônio, que havia se esquecido que era Pedro, tinha como sendo sua vida.
- Esse... esse... sou eu? Não sou eu? Quem sou eu?
- Senhor Pedro, com sua ajuda e a colaboração de seus familiares, nós cremos que podemos resgatar as suas memórias, as suas lembranças... as verdadeiras.

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