quarta-feira, 26 de maio de 2010

A realidade de ponta-cabeça

Os dois tipos básicos de ser humano são o masculino e o feminino. O modo como se estrutura o relacionamento entre mulheres e homens constitui o modelo básico para as relações humanas. [Riane Eisler, na pg 240]
No inicio os invasores eram simplesmente bandos de saqueadores que matavam e pilhavam. Na Europa Antiga o abrupto desaparecimento das culturas estabelecidas coincide com o primeiro aparecimento de túmulos de chefes Kurgans.
Mas depois de algum tempo os próprios conquistadores começaram a mudar. Eles - e seus filhos e netos e, por sua vez, os filhos e netos destes - a dotaram algumas das tecnologias, valores e modos de vida mas avançadas das populações conquistadas. Eles se fixaram e tomaram por esposas mulheres da região. Como senhores micênicos em Creta, acabaram interessando-se pelas coisas mais refinadas da vida.
Depois de cada onda sucessiva de invasões, paulatinamente também se reafirmou o impulso em direção a maior refinamento e complexidade tecnológica cultural. A cada invasão e, após um certo período de regressão cultural, a civilização retomava seu curso interrompido. Mas a civilização tomava agora um rumo muito diferente. Isso porque, se os conquistadores quisessem manter suas posições dominantes, havia um aspecto da cultura anterior que não podia ser absorvido. Esse aspecto, ou mais precisamente esse complexo de aspectos, era o cerne sexual e socialmente igualitário e pacífico do modelo anterior de sociedade em parceria.
A continuidade de dois sistemas constituía um risco enorme de o sistema antigo recobrar sua força, sendo por demais convidativo aos povos que tinham fome de paz e queriam libertar-se da opressão.
Para consolidar o poder das novas elites, essas mulheres teriam que ser despidas de seus poderes de decisão. Ao mesmo tempo, sacerdotisas teriam que ser despojadas de sua autoridade espiritual. A descendência matrilinear teria que ser substituída pela patrilinear, onde as mulheres passaram a ser vistas cada vez mais como tecnologias de produção e reprodução controladas pelos homens ao invés de membros independentes e líderes da comunidade.
Como é típico das sociedades de dominação, as tecnologias de destruição receberam altíssima prioridade. Os homens mais fortes e brutais passaram a ser honrados e lautamente recompensados por sua capacidade técnica de conquistar e pilhar.
A medida que a revolução tecnológica retomou seu crescimento, após a estagnação ou regressão dos tempos de invasão, aumentou a quantidade de bens e outros recursos materiais. Mas o modo como eram distribuídos esses recursos mudou.
A evolução social também retomou o impulso ascendente. Instituições politicas, econômicas e religiosas continuaram a ganhar complexidade. Mas á medida que novas especializações e funções administrativas se fizeram necessárias em função das novas tecnologias, também essas foram assumidas por conquistadores e seus descendentes adeptos do uso da força.
O padrão típico dessas conquistas era primeiro os homens conseguiam posições de dominância destruindo e apropriando-se da riqueza dos territórios conquistados. Depois, à medida que avanços tecnológicos e complexidade social criavam a necessidade de novos papéis na produção e administração da riqueza, também estes eram apropriados por eles.
Os cargos novos certamente não eram dados às chefes dos clãs matrilineares, nem às sacerdotisas. Ao invés disso, todas as novas posições sociais e especializações que tivessem algum poder ou status eram sistematicamente transferidos de mulheres para homens.
Agora era a força o que determinava quem controlaria os canais de distribuição de riqueza. A organização social era regida agora pelo princípio do escalonamento. Começando pela colocação dos homens fisicamente mais fortes acima da outra metade da humanidade, as mulheres, todas as relações humanas tinham que se conformar a esse modelo.
Ainda assim, era preciso estabelecer que os antigos poderes que governavam o universo haviam sido substituídos por deidades novas e mais poderosas. E para tanto era necessário, acima de tudo, garantir que não apenas sua representante terrena, a mulher, mas também a própria Deusa, fosse derrubada de seu elevado posto.
Em alguns mitos do Oriente Médio isso foi obtido pela história de como a Deusa foi trucidada. Em outros, ela foi subjugada e humilhada pelo estupro.
Outro recurso era o de reduzir a Deusa à posição subordinada de consorte de um Deus masculino mais poderoso. Outro ainda era transforma-la em Deusa marcial. Ao mesmo tempo, muitas das funções antes associadas a deidades femininas foram associadas a Deuses.
Negar completamente que o feminino participa da divindade é algo espantoso, principalmente porque boa parte da mitologia hebraica derivou dos mitos mesopotâmicos e cananeus anteriores. Mais espantoso ainda, porque as evidencias arqueológicas mostram que, muito depois das invasões hebraicas, o povo de Canaã, incluindo os próprios hebreus, continuou a venerar a Deusa.
A ausência da Deusa constitui a mais importante assertiva isolada sobre o tipo de ordem social que os homens lutavam para estabelecer e manter. Do ponto de vista simbólico, a ausência da Deusa nas escrituras sagradas oficialmente sancionadas é a ausência de um poder divino para proteger as mulheres e vingar os males infligidos pelos homens.
Por fim, completando e encimando a configuração violenta da sociedade de dominação, temos o autoritarismo e a dominância masculina.
Não foi por coincidência que em toda parte do mundo antigo a imposição da dominância masculina marcou a mudança de um modo pacífico e igualit´raio de organizar a sociedade humana para uma ordem violenta e hierárquica, governada por homens brutais e gananciosos. Tampouco é coincidência que as árvores da vida e do conhecimento, outrora associada ao culto da Deusa, passassem a ser propriedade privada de uma divindade masculina suprema.
Tanto o autoritarismo quanto a dominância masculinas era justificadas pelo mesmo discurso que continua a ser  usado pelos modernos totalitários ou aspirantes a totalitaristas - Não pensem. Aceitem as coisas como são, aceite o que a autoridade diz ser verdade. Acima de tudo, não usem a sua própria inteligência, sua própria capacidade mental para questionar-nos ou buscar conhecimento independente.
Eisler, Riane. O Cálice e a Espada, pg 145-158.

Nota da casa: Fazer uma síntese ou um resumo deste livro nunca fará a devida justiça ao seu conteúdo rico e profundo. Eu coletei o trecho que eu considero mais crucial para se entender o porque de tanta violência, física ou sexual, de nossa sociedade.
PS: Há que se registrar que a autora se baseia nas teorias questionáveis de Marija Gimbutas, o que não invalida o fato de que a violência, a agressividade e o sistema de dominação que oprime e reprime existem. A fonte da violência atual vem do passado, houve uma transformação na sociedade antiga e eu tendo a crer que, como na decadência de Roma, essas mudanças e conflitos foram antes causadas pelas próprias características destas sociedades do que por agentes externos.

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