sexta-feira, 30 de maio de 2014

Reconhecendo nossos ancestrais

Há uma questão muito interessante no Paganismo Moderno quando pensamos na relação entre os Deuses, os nossos ancestrais e a nossa religião.

Quando eu optei pelo Paganismo, a relação intrínseca entre minha origem, identidade e herança cultural e os Deuses Antigos e as religiões pré-cristãs ficaram bem definidas. Mas essa é uma herança cultural, em termos de gens, a coisa fica muito complicada.

Um Deus [ou Deusa] está ligado a uma região, portanto, a um povo, uma etnia. No entanto as muitas etnias humanas deixam de habitar seu nicho original há muito tempo. Nossos ancestrais migraram, colonizaram e miscigenaram com nossos antepassados de outras etnias e origens. Eu, bem como qualquer americano e europeu, nesse mundo contemporâneo, compartilha de uma múltipla herança étnica. Mesmo assim, não faz sentido eu adorar o Deus Cristão, ou o Deus Judaico, ou o Deus Islâmico. Assim como não faz sentido eu adorar os Deuses Hindus, os Deuses Africanos ou os Deuses Asiáticos.

Nós não temos mais as mesmas ligações de sangue que nossos antepassados tinham com a região que habitavam, com uma etnia ou com os Deuses, mas a herança cultural é um legado que não depende de linhagem, mas do conhecimento e este não é propriedade de uma etnia. O legado cultural do qual eu, brasileiro, sou descendente, não é o dos aborígenes desta terra, não é o dos patriarcas bíblicos, não é o dos profetas, não é o dos padres, mas o dos Lusitanos e o dos Romanos.

Alguns grupos falam, com orgulho iludido, sobre a "verdadeira identidade" dos europeus como vindo dos indo-europeus. Para começar, só em falar em grupos ou povos indo-europeus mostra que está se falando de uma mescla, de uma mistura, de uma miscigenação. A classificação como indo-europeu refere-se apenas a matérias linguísticas, e não necessariamente a etnias ou culturas. Os chamados indo-europeus se localizavam, desde o quarto milênio, ao norte do Mar Negro, entre os Cárpatos e o Cáucaso, sem jamais, todavia, terem formado uma unidade sólida, uma raça, um império organizado e nem mesmo uma civilização material comum. Portanto, o que existe é uma enorme confusão ideológica sobre identidade, origem, gens e ethnos.

As ideias de nação e pátria eram completamente desconhecidas por nossos antepassados. Esta ideologia foi totalmente forjada pelas elites seculares e sacerdotais. Os povos da Europa, assim como os da África, da América e da Ásia, são elementos formados e constantemente reformulados pelo processo histórico e não são estruturas atômicas da própria história.

Nos séculos IV e V, a sociedade era basicamente dividida em romanos e bárbaros, uma perspectiva dicotômica do mundo aceita por ambos os grupos, assim como por indivíduos cuja própria vida revelava a falta de correspondência entre essa classificação simplista e a realidade. Ao designar todos os povos não romanizados como “bárbaros” os historiadores romanos forjaram uma unidade que na verdade não existia. Durante o esfacelamento do império, o termo “bárbaro” ajudou a centralizar as perspectivas políticas daqueles que não eram romanos. Embora na Antiguidade clássica o termo bárbaro fosse depreciativo, os exércitos federados do final da Antiguidade aceitavam o termo e o considerava uma designação neutra, ou até mesmo positiva, de sua identidade não romana, uma identidade coletiva muito mais estável do que a miríade de nomes tribais que geralmente eram vinculados à suas famílias e seus exércitos. Por volta do início do século VII, essa distinção não significava mais nada.

Na Idade Clássica, os nossos antepassados tinham o costume de agregar ao seu nome o nome da cidade onde nasceram porque as cidades por ser o centro da riqueza e da sabedoria lhes conferiam prestígio. Com o advento do Império Romano veio o conceito de gens, com os nomes vinculados ao nome de uma família, o que estipulava a situação social do indivíduo.

Foi no Império Romano que se fundou o vínculo entre Estado e Igreja. Por meio do decreto e da espada se fundiu o exercício da cidadania com a crença religiosa.

Com o fim do Império Romano, a fragmentação política acabou acarretando o ressurgimento da fragmentação cultural. Entretanto, os cristãos e pagãos que habitavam o imenso território dominado por Roma já não eram nem romanos, nem bárbaros. A ligação cultural que mantinham com aqueles povos que habitavam a Europa antes das legiões de Roma chegar era mais tênue do que eles desejavam.

A riqueza e o poder do Império Romano certamente atraíram a cobiça e a ganância dos reis da então Europa bárbara e pagã. Foi pelos sonhos destes reis por conquista, poder e riqueza que começaram as invasões destes povos, não em nome da reconquista de territórios ou pela independência das colônias romanas. Esses reis tiranos, em troca do reconhecimento de suas coroas, ofereceram à Igreja Cristã Romana a alma dos seus súditos. Então a Cristianização da Europa foi fundamental para a formação da unidade desses povos bem como para a formação da identidade em comum entre eles. Cidades e reinos independentes sucumbiram nas guerras de unificação promovidas pelos tiranos seculares e sacerdotais. Nesse contexto surgiu a ideia de que a Coroa (o rei) é a Pátria (a nação) e a defesa de ambos é um dever diante de Deus. Eram muito comuns cerimônias coletivas públicas de juramento de fidelidade ao rei, à Coroa, à Nação e a Deus.

A transição da Idade Clássica, marcada pelo Império Romano, para a Idade Média, marcada pelos Impérios Bárbaros, trouxe diversas mudanças para a cultura da Europa com a imposição do modelo romano. A fortuna do indivíduo dependia de sua linhagem familiar e da intrincada relação de vassalagem. Os reis aumentaram seu poder e influência através das guerras, apelando ora à Pátria, ora à Coroa, ora a Deus.

A democratização trouxe um fenômeno inesperado, o Paganismo Moderno, o qual, em contraste com outras religiões, está procurando por valores étnicos genuínos. Pode ser qualificada como uma religião étnica por excelência, no sentido que ela prova sua ligação com valiosos símbolos de identidade étnica. Ainda assim, é mais frequente que não englobe sequer um segmento menor de uma comunidade étnica e seus mitos e ritos não são, em sentido algum, originais e homogêneos, como se afirma ser.

O declínio e o colapso das ideologias causaram uma busca por uma nova recompensa intelectual. O processo foi acompanhado por uma desintegração do falecido sistema político, uma infiltração de novas ideias e religiões, um crescimento de tensões e conflitos étnicos e uma crise de identidade. Em tal ambiente confuso e estressante, muitas pessoas tentaram se basear no que eles tomaram como valores tradicionais. Um crescente interesse na cultura popular, no passado remoto intocado pela influência externa, no que as pessoas recentemente interpretavam como cultura genuína desenvolvida pelos seus antepassados remotos.

Os pagãos modernos estão profunda e insaciavelmente em amor com o passado pré-cristão, como se, nesse tempo, as pessoas vivessem em pureza virginal, não estivessem corrompidas por influências externas e que podiam, portanto, regozijar a melhor ideologia no mundo, travar guerras bem sucedidas e realizar grandes feitos heroicos.

A Europa, bem como os países colonizados por seus descendentes - especialmente as Américas - sofreu um grande trauma em sua identidade étnica, tanto com o domínio do Império Romano quanto com o domínio do Império Cristão. Mas isso faz parte de toda a história humana, mesmo os habitantes primitivos do continente europeu foram dominados por outros povos, que por sua vez foram formados de mesclas de diferentes povos. Não há, na atualidade, forma alguma de restaurar a pureza étnica de povo algum.

Podemos querer saber as nossas origens, resgatar a nossa herança cultural e trazê-la para os nossos dias, não querer levar a atualidade de volta a esse passado dourado idealizado. Nossa identidade, nos dias de hoje, é fruto da contribuição de diversos povos, diversas culturas, incluindo imigrantes, negros, árabes, asiáticos. Querer retomar uma "pureza" étnica é matar parte dessa cultura que também faz parte de nossa identidade, de nossa riqueza, de nosso País. Podemos ter orgulho de nossa gens - um termo que entrou na cultura europeia pelos Romanos - mas não podemos nos esquecer do outro lado do conceito de gens romana - a família, que não era feita apenas de indivíduos ligados por laços sanguíneos, mas também de todos aqueles que o pater familians adotava. Um familiar romano, mesmo se escravo ou servo, usufruía quase dos mesmos direitos que os patrícios romanos, muitos recebia mais que a liberdade, recebiam a cidadania sob o nome da família do pater familians que os adotara. Esse costume ainda faz parte do folclore europeu, bem como do Paganismo Moderno.

Ver diferenças e discriminar são coisas diferentes. Discriminar é reagir de forma preconceituosa, é ser intolerante, é ofender e agredir algo ou alguém simplesmente pelo motivo fútil de ser diferente. A diferença não torna algo ou alguém uma ameaça ou um crime.

Dar prioridades e privilegiar são coisas diferentes. Privilegiar é dotar um grupo de mais direitos que outros, direitos muitas vezes alegados, impostos ou reclamados sem qualquer embasamento ou razão. Dar prioridades não concede a grupo algum tais privilégios. A prioridade aos que são meus não pode excluir o conjunto da comunidade - no que os "estranhos" estão inclusos.

Exclusão não cabe em espaço social algum. Exclusão é sectarismo, nós não podemos agir com essa concepção bairrista, provinciana, regionalista. Exclusão é a soma de discriminação e elitismo, é desumano. O mundo, a vida, a natureza, a herança, são valores pertinentes a todos os seres humanos.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Religiões afro-brasileiras, uma questão filosófica

Em junho de 1993, a Suprema Corte dos Estados Unidos garantiu aos praticantes de cultos de origem africana o direito de sacrificar animais em suas cerimônias religiosas. Esse relevante fato histórico deveu-se, certamente, à articulação das casas de culto de origem cubana estabelecidas no país a partir da década de 1950, as quais na década de 1970 já tinham, entre si, a Church of The Lukumi Babalu Ayé, a qual se propunha, quando de sua fundação, a ter sede, escola, centro cultural e museu, para sua comunidade e público em geral. Na contramão de conquistas como essa, no Brasil atual chega-se a negar aos cultos afro-originados até mesmo a condição de religiões.
Em 1949 era publicado em Paris o livro La philosophie bantoue, obra em que o padre Placide Tempels dava a conhecer o resultado de suas pesquisas de campo realizadas no então Congo Belga. Contrariando toda uma concepção preconceituosamente negativa a respeito do pensamento dos povos africanos, o livro revelava a existência, entre os pesquisados, de uma filosofia baseada na hierarquia das forças vitais do Universo, a partir de uma Força Superior. Assim, quanto aos seres humanos, aprendia o missionário, entre outros postulados, que todo ser humano constitui um elo vivo na cadeia das forças vitais: um elo ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando, abaixo de si, a linhagem de sua descendência. Consoante esses princípios, todos os seres, vivos ou mortos, se inter-relacionam e influenciam. E a influência da ação de forças tendentes a diminuir a energia vital se neutraliza através de práticas que façam interagir harmonicamente todas as forças criadas e postas à disposição do homem pela Força Suprema.

Meio século depois, outro missionário, o padre espanhol Raúl Ruiz Altuna, pesquisando a partir de Angola, conseguia estabelecer outra hierarquia, traduzida nos seguintes ensinamentos:
A Força Suprema reconhecida pelo pensamento africano corresponde ao Ser Supremo das religiões monoteístas. Criador do universo e fonte da vida, esse Ser infunde respeito e temor. Mas é tão infinitamente superior e distante que não é cultuado, ou seja: não pode nem precisa ser agradado com preces nem oferendas. Abaixo desse Ser situam-se, no sistema, seres imateriais livres e dotados de inteligência, os quais podem ser gênios ou espíritos.
Os gênios são seres sem forma humana, protetores e guardiões de indivíduos, comunidades e lugares, podendo temporariamente habitar nos lugares e comunidades que guardam, e também no corpo das pessoas que protegem. Já os espíritos são almas de pessoas que tiveram vida terrena e, por isso, são imaginados com forma humana. Podem ser almas de antigos chefes e heróis, ancestrais ilustres e remotos da comunidade, ou antepassados próximos de uma família.

Ao contrário do Ser supremo, gênios e espíritos precisam ser cultuados, para que, felizes e satisfeitos, garantam aos vivos saúde, paz, estabilidade e desenvolvimento. Pois é deles, também, a incumbência de levar até o Deus supremo as grandes questões dos seres humanos. Assim, já que contribuem também para a ordem do Universo, eles devem sempre ser lembrados, acarinhados e satisfeitos, através de práticas especiais. Essas práticas, que representam um culto em si, podem, quando simples, ser realizadas pelo próprio interessado. Mas, quando complexas, devem ser orientadas e dirigidas por um chefe de culto, um sacerdote.
Dentro dessas linhas gerais, segundo entendemos, foi que se desenvolveu a religiosidade africana no Brasil e nas Américas.

Os estudos dos padres Tempels e Altura desenvolveram-se entre povos do grupo Banto, do centro-sudoeste africano. Mas outros estudos, inclusive de sábios e cientistas nativos, nos deram conta de que, embora as religiões negro-africanas tenham suas peculiaridades, todas elas comungam de uma ideia central, a da inter-relação entre as forças vitais, sendo vivenciadas segundo princípios comuns.
Por conta dessas formulações, em 1950, no texto Philosophie et religion des noirs (revista Présence Africaine, nº especial 8-9), o antropólogo francês Marcel Griaule primeiro indagava se seria possível aplicar as denominações “filosofia” e “religião” à vida interior, ao sistema de mundo, às relações com o invisível e ao comportamento dos negros. Perguntava-se, ainda, sobre a existência de uma filosofia negra distinta da religião e de uma religião independente, de uma metafísica, enfim.
Ao final de sua indagação, o cientista afirmava a existência de uma verdadeira ontologia (parte da filosofia que estuda a existência) negro-africana, concluindo pela antiguidade do pensamento nativo, nivelando algumas de suas vertentes a concepções filosóficas asiáticas e da Antiguidade greco-romana; e ressaltando a necessidade e a importância do estudo desse pensamento. Quatro décadas depois, o já citado Altuna, fazendo eco a Griaule, afirmava: “Basta debruçarmo-nos sobre esse conjunto de crenças e cultos para encontrar uma estrutura religiosa firme e digna”.

O termo “religião”, segundo N. Birbaum, referido no Dicionário de Ciências Sociais publicado pela Fundação Getúlio Vargas, em 1986, define um conjunto de crença, prática e organização sistematizadas, compreendendo uma ideia que se manifesta no comportamento dos seguidores. Daí aferimos que toda religião se define, em princípio, por um culto prestado a uma ou mais divindades; pela crença no poder desses seres ou forças cultuados; e em uma liturgia, expressa no comportamento ritual; e finalmente pela existência de uma hierarquia sacerdotal.
Pelo menos desde meados do século XIX, as religiões chegadas da África ao Brasil, apesar de todas as condições adversas, conseguiram recriar, no novo ambiente, as crenças e as práticas rituais de sua tradição ancestral, dentro dos princípios científicos que definem o que seja religião.
Na própria África já se distinguia, por exemplo, o feiticeiro (ndoki, entre os bantos), agente de malefícios, do ritualista (mbanda ou nganga), manipulador das forças vitais em benefício da saúde, do bem-estar e do equilíbrio social de sua comunidade. E no Brasil, como em outros países das Américas, as diversas vertentes de culto chegaram a tal nível de organização que constituíram, de modo geral, categorias sacerdotais altamente especializadas. Por exemplo, no candomblé: um babalorixá (“pai daquele que tem orixá”, e não “pai de santo”, como se traduziu derrogatoriamente) não tem a mesma função de um “babalaô” (“pai do segredo”), responsável por interpretar as determinações do oráculo Ifá. Uma equede (sacerdotisa que atende os orixás quando incorporados) não tem as mesmas funções de uma iá-tebexê (a responsável pelos cânticos rituais). Da mesma forma que um axogum (sacrificador ritual) não tem as mesmas funções de um alabê (músico litúrgico), por exemplo.
As religiões de matriz africana no Brasil, em suas várias vertentes, praticam uma liturgia complexa, que compreendem rituais privados e públicos. Nas práticas privadas, todo ritual se inicia pela invocação nominal dos ancestrais, remotos e próximos, dos fundadores do templo, em listas tão mais longas quanto mais antigo for o “fundamento” da casa. Nas festas públicas, notadamente no chamado candomblé jeje-nagô, oriundo da região africana do Golfo do Benin, as divindades (orixás ou voduns) se manifestam numa ordem rigorosamente obedecida, da primeira à última a entrar na roda das danças. E por aí vamos.

Não é o monoteísmo que caracteriza uma religião. Se assim fosse, as religiões orientais como o hinduismo, o taoísmo etc. não seriam como tal consideradas. Muito menos o é a circunstância de as práticas religiosas serem ou não baseadas em textos escritos. A propósito, o historiador nigeriano I.A. Akinjogbin, em artigo na coletânea Le concept de pouvoir em Afrique (Paris, Unesco, 1981), assim se manifestou: “O conhecimento livresco tem um valor formal e importado, enquanto o saber informal é adquirido pela experiência direta ou indireta. Os conhecimentos livrescos não conferem sabedoria (…) O ensinamento tradicional deve estar unido à experiência e integrado à vida, até porque há coisas que não podem ser explicadas, apenas experimentadas e vividas”.
Vejamos, em conclusão, que toda a tradição africana de culto aos orixás, da qual no Brasil se originaram principalmente o candomblé da Bahia (nagô e jeje), o xangô pernambucano, o batuque gaúcho e a umbanda fluminense, tem uma base filosófica. Esse fundamento é, em essência, o vasto conhecimento que emana da tradição iorubana de Ifá, o oráculo que tudo determina, em todos os momentos da vida de uma pessoa, de uma família, de uma cidade, de uma nação etc. Da tradição de Ifá é que vêm, por exemplo, a origem dos orixás, sua mitologia, suas predileções, suas cores etc. O popular jogo de búzios é uma forma simplificada de consulta ao oráculo.
Esse corpo de doutrina, compreendendo muitos milhares de parábolas, foi transmitido de geração a geração entre os antigos babalaôs, na África e nas Américas. E nos tempos atuais, embora não unificado, já começa a ter circulação inclusive na internet.
Pois essa tradição remonta a muitos séculos; e sua história se conta a partir do momento em que Oduduá, o grande ancestral dos iorubás, cuja presença histórica, no século XII d.C., é atestada cientificamente (cf. A. F. Ryder, História Geral da África, Unesco/MEC/UFScar, vol. IV, 2010, p. 389), após fundar a antiga cidade de Ifé, enviou seus diversos filhos em várias direções, para fundar cada um o seu reino.
Mas esta é apenas uma parte da alentada e sábia tradição religiosa que os antigos africanos legaram ao Brasil. A qual, como um todo, goza da proteção constitucional do artigo 5º da Constituição Federal, bem como daquela assim enunciada: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, parágrafo 1º).

Por Nei Lopes, do Geledés, no Caros Amigos [link morto]

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Irreconciliáveis

Aidan Kelly, no Patheos, em sua coluna “Including Paganism”, no tópico “The Goddess Murder II” faz várias perguntas concernentes não ao Paganismo, ou à Bruxaria, mas um desejo oculto em conciliar dois sistemas de crenças tão antagônicas quanto Paganismo e Cristianismo.

Aidan pergunta:

E se Maria Magdalena fosse esposa de Jesus e verdadeira sucessora?

E se ela fugiu para Alexandria e fundou uma comunidade baseada nos verdadeiros ensinamentos de Jesus?

E se ela teve que fugir novamente, para a Gália e continuou ali a comunidade?

E se os documentos contendo as doutrinas dela foram preservados por esta comunidade por séculos, através da Alta Idade Média?

E se esses documentos forem a base dos ensinamentos da “bruxa” chamada de Aradia?

E se a família de Aradia, como uma família de bruxas hereditárias, preservaram esses ensinamentos e distribuíram esses escritos até a Idade Moderna?

E se esses documentos fundamentalmente heréticos repentinamente aparecessem agora?

E se tais bruxas hereditárias fossem, portanto, cristãs genuínas que preservaram os ensinamentos originais de Jesus?

Aidan Kelly tem uma péssima reputação nos círculos da Wicca Tradicional. Ele é o autor de diversos livros que tentaram difamar o nome de Gerald Gardner e tentou refutar a hereditariedade de toda a Wicca Tradicional. Ele perpetrou tal acinte porque, depois de fundar a NROGD, queria que sua forma de wicca eclética fosse aceita, reconhecida e respeitada da mesma forma que as demais vertentes da Wicca Tradicional. Evidentemente, ele não conseguiu. Em sua busca por aceitação, ele foi um dos fundadores da COG, recebeu iniciação na Tradição Feri [uma forma de neopaganismo e uma forma de culto moderno de bruxaria], tornou-se membro da CAW, trabalhou com a Tradição 1734 e lançou recentemente outros títulos sobre a “história” da Bruxaria e da Wicca, nos termos dele. Eu não estranharia se Aidan tentasse, de alguma forma, reconciliar seu lado católico/cristão com seu lado pagão. Eu cometi esse mesmo erro, eu busquei por aceitação, reconhecimento, respeito, aprovação, permissão, benção. Um pagão, um bruxo autêntico não precisa de permissão, autorização ou aplauso, nós devemos servir aos Deuses.

O Cristianismo é irreconciliável com o Paganismo, mesmo em sua forma esotérica. Em seus primórdios, os cristãos mesclaram, em suas doutrinas, muitas das doutrinas das Religiões de Mistério que existiam na época, com o intento de angariar audiência e aumentar o número de prosélitos entre os “gentios”. Mas a história do Cristianismo está vinculada à história do Judaísmo, cuja característica principal é o monoteísmo, a noção de pecado e a condenação da bruxaria.

Eu vou deixar de lado as questões cruciais sobre a existência real e histórica de Yeshua ben Yosheph, as questões de se ele era o Ha-Massiah, ou o Cristo e as questões se Cristo veio para “salvar o mundo”. Vamos nos concentrar nas questões de Aidan a respeito de Maria Magdalena e Cristo.

Maria Magdalena é esposa de Cristo segundo a doutrina Gnóstica, uma forma de cristianismo esotérico, misturado com diversas outras doutrinas do Oriente Médio, como o Mazdeismo, o Mithraismo e o Orfismo. De acordo com a Gnose, Maria Magdalena é quem seria o Cristo, ou melhor, uma Alta Sacerdotisa dos Mistérios Antigos. Aquele quem foi chamado de Jesus Cristo foi um de seus iniciados, um dos poucos que tentou trazer ou conciliar o Judaísmo com as Religiões de Mistério, por causa do espírito do tempo, onde o sincretismo e a religião estavam se transformando em um fenômeno das massas. Jesus foi identificado como Cristo porque entre os Judeus a ideia de uma mulher como Alta Sacerdotisa é impensável, como ainda é para a Igreja Católica. Não é mera coincidência que muitos dos “ensinamentos” contidos nos Evangelhos são contraditórios e conflitantes com os ensinamentos do Velho Testamento.

A fuga de Maria Magdalena faz parte dos mitos dos cristãos gnósticos, mas sem termos acesso a estes “documentos”, não passa de conjectura absurda achar que estes textos teriam algo além de Cristianismo e esoterismo oriental indistinto. As comunidades cristãs se espalharam e cresceram, prioritariamente, em lugares onde “gentios” e judeus haviam formado comunidades, conhecidas como Nazarenos, da raiz Notzri, um conceito conhecido do Judaísmo, não por ser oriundo da cidade de Nazaré. Alexandria era uma dessas cidades, mas é tão provável falar em “verdadeiros ensinamentos” de Cristo quanto em “verdadeira bruxaria”. A Gália, atual França, foi incluída nesses mitos gnósticos cristãos graças a Carlos Magno, o rei da França, cuja família, os Merovíngios, tem sua própria lenda.

Depois do Concílio de Niceia, a Igreja Católica condenou toda e qualquer outra forma de Cristianismo que não fosse a sancionada por Ela mesma. Com a queda do Império Romano e o surgimento dos reinos bárbaro-cristãos, têm inicio a Idade Média e as guerras contra as heresias. Nessa era onde havia um totalitarismo do Vaticano, poucos escritos não canônicos sobreviveram, assim como hereges sobreviveram em comunidades isoladas, mas é pouco provável que tenham tido qualquer vinculo com os cultos campesinos e com os cultos de bruxas. Ainda assim seriam cristãos, com uma forte influência do Judaísmo, não cederiam ao sincretismo religioso que misturou as crenças originais europeias pré-cristãs com o Cristianismo.

Aradia, figura lendária da Stregueria, viveu na Itália, não na França. Sua lenda, tal como nos foi contada por Charles Godfrey Leland, tem pouca ou nenhuma base histórica. O livro “Il Vangelho di Aradia” pode muito bem ser uma obra de ficção escrita por Charles que utilizou como base algumas crenças do folclore da Toscana, Itália. Na época em que Charles Leland escreveu este texto herético, a Igreja perdeu muito de seu poder, o Colonialismo fomentou o Movimento Romântico e um crescente interesse entre artistas e intelectuais pela Bruxaria. Muitos livros, sejam acadêmicos, sejam literários, traziam muito da concepção judaico-cristã sobre o que era Bruxaria e quem eram as bruxas, ou seja, como um mero resultado da folclorização do Cristianismo. O livro de Charles Leland tem aportes que tocam aspectos da teologia cristã, como a figura de Lúcifer e a missão “redentora” de Aradia, como um reflexo tardio da figura de Maria Magdalena. A Stregueria, a Bruxaria Tradicional, as Religiões de Mistério, podem até ter a noção de purificação, mas isso é algo individual, através de sacrifícios pessoais e intransferíveis. Mesmo nos cultos de Orfeu, Dioniso, Atis, Mithra e outros “proto-cristos”, os rituais de expiação coletivos tinham que ser realizados em um templo, cujos sacrifícios tinham que ser realizados dentro de uma cerimônia e era aberto apenas para neófitos que iriam entrar para o templo. Circunstâncias que denotam uma grande distância entre as Religiões de Mistério e o Cristianismo. O ato de sacrifício de Cristo foi feito em terreno profano, sem a presença de ritual, cerimônia, sacerdote ou Deus, portanto foi um ato em vão.

Por fim, a alegação de que essas bruxas hereditárias fossem cristãs genuínas que preservaram os ensinamentos de Cristo. Aqui entra no perigoso jogo do “cristão verdadeiro”, um terreno onde é fácil cometer uma falácia no argumento, haja visto as inúmeras vertentes do Cristianismo pelo mundo. Os Evangelhos são uma pálida evidência do que se consiste nos “ensinamentos” de Cristo, se não contarmos os Apócrifos e outros textos gnósticos. A expansão do Cristianismo não foi pacífica nem foi aceito sem resistência, quando o Império Romano, por Constantino e Teodósio, decretou o Cristianismo como a única religião oficial, houve revoltas e guerras, mas no fim o Cristianismo foi implantado, mas não sem acabar assimilando, incorporando as crenças locais e a população contribuiu através da sincretização e folclorização do Cristianismo. A Bruxaria está contida no folclore da Europa então aconteceu que cristãos se envolveram com Bruxaria e bruxas usaram elementos da crença oficial para ocultar seu Ofício, mas estão em um terreno perigoso, estão andando no fio da navalha. Uma bruxa hereditária e tradicional não vê problema algum com as ferramentas que usa, mas dificilmente irá aceitar a autoridade da Igreja, do Cristianismo ou de Cristo. Um cristão que ignora as bases de sua crença o faz porque a Bruxaria funciona e as entidades presentes na natureza são mais solícitas do que o Deus Cristão. Ainda assim um cristão “genuíno” dificilmente poderia ser um bruxo hereditário, pelas próprias condições do Cristianismo e as características intrínsecas da Bruxaria. Somente com uma leitura muito superficial, tendenciosa e romântica que um cristão poderia “ver” os milagres de Jesus como atos resultantes de Bruxaria ou de Magia. Somente com essa visão idílica e utópica Maria Magdalena seria vista como Alta Sacerdotisa. Somente rejeitando todo o alicerce contido no monoteísmo judaico-cristão que se pode alegar que os ensinamentos originais de Cristo possam ser a base da Bruxaria Hereditária. Para um acadêmico que pretende ser historiador da Bruxaria, Aidan Kelly está cometendo muitos pecados. Para a comunidade acadêmica e pagã, o texto dele é mais um de seus desvarios.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Quando caem as estrelas

O ser humano conviveu com os Deuses na Era de Ouro. Todas as necessidades eram supridas, mas não havia desafio, aprendizado, crescimento. Então escolhemos e pedimos aos Deuses que nos dessem um lugar, um local, um palco, onde poderíamos encenar isso que chamamos de vida.

Deliberadamente, pela vontade, a humanidade se privou da beatitude e benção eterna, vestiu uma pele e entrou em um mundo material onde as necessidades devem ser supridas pelo nosso esforço. Por causa dessa nova natureza, sofremos, sentimos dor, adoecemos e, quando o vaso quebra, nossa alma retorna à sua origem.

Inconstantes, inseguros, imaturos e descontentes que somos, temos procurado resgatar nossa essência original, tentando nos religar ao divino. Inventamos as crenças, as religiões, as espiritualidades e inúmeros caminhos que nos façam voltar para casa. Enquanto a busca era pessoal e individual, estava tudo bem. Mas o ser humano inventou a sistematização, a institucionalização, a organização dessas crenças, religiões e espiritualidades.

Uma das razões que procuramos uma crença, uma religião, uma espiritualidade, é para dar sentido às nossas vidas. Encontramos modelos e os imitamos na esperança de que suas vidas vão ser bons exemplos para nós. O problema é que esperamos exemplos sobre-humanos. Acreditamos que as pessoas que têm sabedoria espiritual de alguma forma transcendem as limitações da humanidade, e tornam-se melhores do que os seres humanos podem realmente ser. Esta é uma ilusão insalubre.

Da estruturação surgiu o sacerdócio e não demorou em surgirem sacerdotes que viam no oficio não o serviço aos Deuses, mas uma forma de conquistarem poder, influência e autoridade que normalmente ele não conseguiria em sua comunidade, tornando se um sacerdote doente.

Os sintomas da doença do sacerdote são a arrogância, a incapacidade de aceitar críticas, explosões emocionais, uma necessidade compulsiva de controle, um sentimento de abandono, a impaciência, um sentimento de não ser levado a sério ou de suas realizações serem desconsideradas e se torna frustrado quando as pessoas desobedecem ou ignoram seus pedidos ou instruções.

No alto do pedestal em que foi entronado e que ele se pôs, o sacerdote acredita que está acima da crítica, acima do questionamento, acima da mediocridade, acima do mundano, certo e confiante de que detém o monopólio e o privilégio da santidade. Do alto do seu pedestal denuncia, julga e executa suas sentenças. Por seu orgulho, um sacerdote exige humildade do crente e do neófito. Por seu ego, um sacerdote exige que o crente e o neófito seja um reflexo dos seus conceitos e modelos. Diante do crente e do neófito, exige atos dos quais ele não é exemplo.

Refém dos louros com que se transveste, o sacerdote inventa uma fantasia chamada transcendência, uma ilusão útil para renegar sua perenidade, sua mortalidade, sua falibilidade, sua humanidade. Usando metáforas como “espelho”, “casca”, o sacerdote tenta se alienar de sua condição carnal. No entanto as regras da transcendência, da espiritualidade, da religiosidade, da crença, da realidade divina, aplicam-se também ao sacerdote.

Vemos no espelho [e no “outro”] aquilo que rejeitamos em nós mesmos. Virar as costas ao espelho ou quebrá-lo não mudará o fato que a falha é do sujeito, não do objeto. Animais trocam de pele por uma condição natural da espécie, o mesmo não pode ser dito daquilo que o sacerdote definiu como “casca”. Um sacerdote não pode empilhar sentimentos, experiências, pensamento, comportamentos e pessoas como se fossem uma pele ressecada e descartá-los.

Podemos e devemos modificar a forma como interpretamos e vivemos nossas emoções, comportamentos e visões do mundo, mas não podemos fazer um julgamento, pela emoção, das experiências e das pessoas. Um juramento é eterno, assim como amizade e amor. O sacerdote deve ser o exemplo daquilo que pratica e acredita. O sacerdote que abjura dos votos, que dá as costas aos que antes dizia ter amizade, não é digno do ofício. Qualquer que seja esta trilha, os abandonados tem mais sorte do que este sacerdote que age com orgulho, arrogância, prepotência.

Quando estrelas caem, não há lamento. Quando sacerdotes caem, não há comoção.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

A liberdade religiosa na Justiça

A intolerância religiosa e os preconceitos em relações ao candomblé e à umbanda sempre infiltraram os poderes da República e as instituições do Estado que se pretende laico. E talvez pelo fato de essa infiltração ter sido sempre negligenciada, apesar dos seus efeitos nocivos, ela tenha feito desabar um cômodo do Judiciário: a Justiça Federal do Rio de Janeiro definiu que umbanda e candomblé "não são religiões". Tal definição - que mais se parece com uma confissão pública de ignorância - se deu em resposta a uma decisão em primeira instância do Ministério Público Federal que solicitou a retirada, do Youtube, de vídeos de cultos evangélicos neopentecostais que promovem a discriminação e intolerância contra as religiões de matriz africana e seus adeptos, já que o Código Penal, em seu artigo 208, estabelece como conduta criminosa, “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.
Em vez de reconhecer a existência da ofensa - e não há dúvida para qualquer pessoa com um mínimo de discernimento e senso de justiça de que a ofensa existe - a Justiça Federal do Rio de Janeiro desqualificou os ofendidos; considerou que não "há crime se não há religião ofendida". Para tanto, a Justiça Federal do Rio conceituou umbanda e candomblé como cultos a partir de dois motivos absolutamente esdrúxulos (ou seria melhor dizer a partir de dois preconceitos?): 1) candomblé e umbanda deveriam ter um texto sagrado como fundamento (aqui a Justiça Federal ignora completamente que religiões de matriz africana são fundadas nos princípios da transmissão oral do conhecimento, do tempo circular, e do culto aos ancestrais); e 2) candomblé e umbanda deveriam venerar a uma só divindade suprema e ter uma estrutura hierárquica (aqui a Justiça Federal do Rio atualiza a percepção dos colonizadores do século XVI de que os indígenas e povos africanos não tinham fé, não tinham lei nem tinham rei). Pergunto: Há, na decisão da Justiça Federal, pobreza de repertório cultural, equívoco na interpretação da lei ou cinismo descarado?
A decisão judicial fere claramente dispositivos constitucionais e legais, além de violar tratados internacionais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 1992 e que dispõe sobre a garantia de não discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões, políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. Esse pacto diz ainda que o direito à liberdade de consciência e de religião implica na garantia de que todos são livres para conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como na liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos afirma que ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações existentes em leis e que se mostrem necessárias à proteção da segurança, da ordem, da saúde ou da liberdade.
Ou seja, se há uma liberdade religiosa a ser limitada é a daquelas religiões que usam dos meios de massa para difamar e promover a intolerância contra outras religiões e divulgam práticas que põem em risco a saúde coletiva, como pedir que pessoas abandonem tratamento de câncer ou aids em nome de orações!
Ao ratificar esse Pacto, o Brasil assumiu desde 1992 o papel de um país que tem a obrigação de respeitar direitos. Infelizmente, o Poder Judiciário, que tem a função de "dizer o direito", de aplicar as leis, assim não o fez, simplesmente negando a interpretação dos ditames constitucionais e disposições supranacionais de direitos humanos.
Já foi noticiado que o Ministério Público Federal recorreu dessa decisão, mas precisamos ficar atentos a essas manobras que perseguem, acuam e tentam destruir o que não está de acordo com o que o fundamentalismo religioso determina como correto. E não resta dúvida de que essa decisão judicial é fruto do fundamentalismo religioso que avança sobre os poderes da República. Não podemos nos esquecer de que todos estamos sob a garantia de que podemos promover reuniões livremente para realizar cultos de qualquer denominação - um direito individual e coletivo previsto na Constituição Federal, artigo 5º, inciso VI.
O ataque à umbanda e ao candomblé é também um ataque de viés racista por se tratar de religiões praticadas sobretudo por pobres e negros. Mas é, antes, uma disputa de mercado. O que os fundamentalistas pretendem com os ataques à Umbanda e ao Candomblé é atrair os adeptos - e, logo, o dinheiro deles - para suas igrejas. E como vivemos sob uma cultura cristã hegemônica, que se fez na derrisão e repressão das religiões indígenas e africanas, é óbvio que as igrejas fundamentalistas levam a melhor nessa disputa de mercado e em suas estratégias de difamação.
O que esperamos do Judiciário é o mínimo de justiça que possa colocar freios à intolerância e à ganância dessas igrejas e seus pastores; e possa assegurar a pluralidade religiosa pautada no respeito e sem hierarquias entre as religiões.
Fonte: Jean Wyllys [link morto]

domingo, 11 de maio de 2014

Reconhecendo nossos Deuses

Nós vivemos em uma cultura dominada pela teologia judaico-cristã, então qual é a teologia do paganismo moderno, como podemos reconhecer nossos Deuses?

Podemos partir das questões dos descrentes:

Como você sabe que você experimentou a Deus e não alguém ou alguma outra coisa? Como uma pessoa pode reivindicar que reconhece Deus? Sobre que base racional que você poderia alegar ter reconhecido Deus, sabia que era Deus, e, posteriormente, afirma ter encontrado Deus? Que argumentos ou provas, uma pessoa pode usar para afirmar que tudo o que experimentou é necessariamente de qualquer suposto Deus, não importando qual Deus que ele acreditava? Não deveríamos suspeitar que, de todos os possíveis Deuses que as pessoas acreditaram, uma pessoa tenha encontrado exatamente o Deus em que acreditava ou exatamente o tipo de Deus que é popular em sua cultura e então ficou provado?

Eu cito um trecho de um texto meu que pode responder estas questões:

Para que o ateu possa perceber a evidência da existência dos Deuses ele terá que:
a) desenvolver a percepção;
b) abandonar os preconceitos e as doutrinas;
c) procurar e desenvolver uma experiência religiosa; d) procurar conhecer e reconhecer os Deuses como são, onde estão.

Podemos recorrer ao texto de Epicuro, muito utilizado pelos descrentes:

Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses. Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles.

Eu cito um trecho de um texto meu:

Há que se explicar muitas coisas quando se fala em Paganismo. Espera-se muitas coisas de nossos Deuses que Eles nunca, ao contrário do Deus Cristão, prometeram. Há que se ler na história, de forma séria e honesta, o que os Deuses Antigos nos davam, o que Eles esperavam de nós e o que nossos antepassados fizeram por Eles.

Uma coisa é certa: os Deuses Antigos nunca prometeram aos seus adoradores uma falsa paz, um falso amor, uma falsa salvação, uma falsa redenção. Eles nunca prometeram que a vida seria mais fácil ou mais branda se nós os adorássemos. Eles nunca nos condenaram nem nos julgaram por nossas falhas, jamais agiram como padrastos que apenas acusa a paternidade quando convém ou quando há uma obediência cega.

Eu gostaria de citar algumas partes do livro de Walter Otto, Teofania:

Dogma algum proclama, em nome desses Deuses, como é que eles devem ser considerados, como eles se posicionam em relação ao homem e o que estes lhes deve. Nenhuma escritura sagrada assinala o que se deve saber e crer. Cada um é livre de pensar a seu modo sobre os Deuses, desde que não deixe de prestar-lhes homenagem segundo os costumes antigos.

Assim sendo esses Deuses não tem qualquer necessidade de uma revelação autorizada como a que serve de apoio a outras religiões. Manifestam-se em todo o ser e acontecer e com tal evidência que, nos séculos de apogeu, à exceção de raros casos, de fato inexistia a incredulidade.

Os Deuses estão onde quer que se passe, faça ou sofra algo decisivo. Esta consciência da presença divina em todo ser e acontecer, esta sensibilidade que não pode falar de nenhum evento significativo sem cogitar da divindade nela atuante, não tem igual em parte alguma do mundo.

A divindade não só é a motivadora de tudo quanto é importante, mas na verdade é quem o faz, vai além das noções religiosas que nos são familiares. Também em situações de outra natureza o fazer humano é propriamente um ato divino. Os Deuses não se manifestam apenas nos fenômenos da natureza e nos acontecimentos fatais; manifestam-se também no que move o homem interiormente, determinando sua atitude e suas ações.

As potências da vida que nós conhecemos como estados de ânimo, inclinações, exaltações, são formas ontológicas da natureza divina que, como tais, não dizem respeito apenas ao homem; operam na terra inteira e em todo o cosmo com seu ser infinito e eterno. O que move o homem no seu íntimo é o ser tomado por divinas potências que, como tais, por toda parte atuam.

O divino em cujo seio o homem sabia-se amparado, neste caso, não é absolutamente outro em que se refugiam aqueles para os quais a realidade do mundo se acha dessacralizada. Pelo contrário, é o que nos rodeia, o meio em que vivemos e respiramos, que nos comove e ganha forma na claridade de nossos sentidos, de nosso espírito. Todas as coisas e fenômenos falam dele, na hora magna em que falam de si mesmos.

Porém o divino é muito mais que todas as coisas, fenômenos e instantes em que sua presença se declara. É a forma de todas as formas, a Essência vivente, disposta a falar imediatamente ao homem, indo-lhe ao encontro, se ele for homem de verdade. De todos os seres vivos, só o homem nasceu com a faculdade de perceber e verificar Formas essenciais. Portanto, sua própria constituição o liga com as formas do Ser e sua hierarquia até, no ápice, a Forma do Divino.

O divino só pode falar ao divino. Portanto, se o homem o pode perceber, ele já está no homem.

Este saber de uma pletora de Deuses que não apenas vive no universo, antes é o universo, [...]. Seria o caso de dizer: tudo que é essencial e verdadeiro manifesta uma forma divina. Porém mais certo seria o contrário: são as formas divinas que tornam manifesto tudo quanto há de essencial e verdadeiro.

Assim como essas divindades revelam ao homem a verdadeira nobreza, a grandeza genuína, não por meio de preceitos e ensinamentos, mas por seu simples ser, assim também, por este ser, franqueiam-lhe as profundezas e lonjuras do mundo.

Em verdade, as realidades do mundo outra coisa não são senão Deuses, presenças e manifestações divinas. O que cada um dos Deuses patenteia é sempre o mundo em sua totalidade. Pois em cada uma das revelações particulares que eles constituem encerram-se todas as coisas.

Eu vou transcrever algumas das minhas reflexões:

Na concepção dos nossos antepassados, Deus é um título, não uma entidade. A palavra Deus tem sua origem de Diaus, que significa brilhante, fulgurante. Em antigas culturas o sinal cuneiforme usado para simbolizar "Deus" era o mesmo de "estrela". Quando nossos antepassados faziam pinturas ou estátuas de seus Deuses, muito comumente eram caracterizados com chifres, com cabeças de animais ou associados a determinadas árvores ou outras plantas, bem como eram associados a fenômenos naturais. Não que os Deuses fossem animais, plantas ou fenômenos naturais. Ou que os Deuses seriam a "explicação" para os fenômenos naturais. Convenções de linguística são convenientes para lembrar que um signo, um símbolo, são recursos para representar [tornar presente] algo, alguém, fato, evento, fenômenos, sem que o signo ou símbolo seja confundido com seu referente. Os Deuses recebiam tais caracterizações para representá-los, em sua personalidade, identidade, atributo, existência, pela manifestação que provocavam na natureza. Da mesma forma como é possível afirmar a existência de ondas e radiações pelos resultados de suas manifestações, então deveria ser aceitável o conceito de que é possível afirmar a existência dos Deuses pelos resultados de suas manifestações - a natureza.

Conclusão:

Ao declarar qual sua crença, você declara mais do que sua crença em Deus ou Deuses, você declara qual é a sua identidade, quais são seus ancestrais, qual é a sua origem, qual é o seu povo. Declare então quem você é, redescubra sua origem, sua tradição, seu povo, sua crença, seus Deuses, redescubra seu lugar no Paganismo.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

O corpo

Que lugar de confusão complexa é o corpo. Como pessoas espirituais, nós temos várias convenções sobre ele para considerar.

Muitas tradições religiosas proclamam que o corpo é algo negativo, um obstáculo em nosso caminho para a iluminação ou a salvação. O corpo é um conjunto de paixões em guerra, uma coleção de fluidos impuros e matéria, um obstáculo e nada mais. Esta é uma compreensão dualista do mundo, onde o corpo e toda a matéria são separados do espírito. Se transcendermos nossos corpos, geralmente através de renúncia ou ascetismo, estaremos livres da escravidão do mundo físico.

Algumas tradições abraçam este mundo e todas as várias manifestações físicas, vendo o físico como um local de prazer e alegria. Se alguém vê o divino em tudo, então o dedo do meu pé, aquela árvore e seu gato são todas formas de manifestação do divino. Isso pode levar a duas ideias diferentes, uma que tudo que é prazeroso vale, e outra que envolve moderação.

Algumas tradições espirituais não falam muito sobre o corpo de qualquer maneira. Mas se você cavar mais fundo, quase todas as tradições caem em um dos dois campos. E a maioria delas caem na primeira, a de negação do corpo.

Como uma mulher no mundo ocidental, existem inúmeras outras questões sobre corpo no alicerce da tradição filosófica e religiosa. Os discursos, na maioria, são dualistas por natureza. Dizem, quase por inteiro, que o corpo feminino é perigoso. Mesmo com a ostentação comparativamente hedonista - o uso de corpos femininos para vender coisas e entretenimento em filmes e pornografia - o corpo feminino é um objeto usado por forças patriarcais em seu benefício, nunca para benefício ou prazer da fêmea. O corpo é definitivamente usado como uma armadilha, mas supõe-se que tenhamos um heroico espírito de autocontrole. É tudo muito confuso.

Nas minhas tradições escolhidas, o corpo e o espírito não são entidades dualistas em guerra uma com a outra, nem são uma e a mesma coisa. Eu vejo o corpo como um presente. A personificação é cheia de beleza. Alguns dizem que os espíritos invejam nossa existência física. Nós temos o cheiro, o tato, o paladar, o tato, o sentimento. O meu corpo é meu veículo, a minha ferramenta, mas não é uma carne mecânica que faz a vontade da minha mente - uma perspectiva dualista. Idealisticamente, meu corpo e minha alma trabalham em conjunto para o bem de todas as minhas partes, para manter a conexão entre essas partes e com outras criaturas e espíritos.

Evidente, nossos corpos e nossos sentidos podem nos enganar. Uma coisa boa em excesso já não se torna uma coisa boa. Muito vinho embota nossos prazeres, muita comida faz com que nossos estômagos doam, muito sono pode nos deixar desatentos, etc. E nossos corpos muitas vezes nos “traem”. A dor nos impede de nos conectar; a conexão é, em minha opinião, o objetivo principal da vida espiritual. Eu tenho uma quantidade maior de compaixão para com os meus amigos e outras pessoas que experimentam a dor e desconforto.

E depois de todo esse sofrimento, controle e negação (ou revelação) de nossos corpos - nós morremos.

A teologia cristã vê a morte como a prova do pecado. Adão e Eva teriam vivido para sempre, mas foram amaldiçoados com labuta, sofrimento e morte. "Porque o salário do pecado é a morte." Isso não é uma metáfora. O Cristianismo Clássico vê isso como uma verdade física. Eu acho que é um disparate. Na melhor das hipóteses, é uma metáfora. A dor e o sofrimento de qualquer tipo são de fato uma forma de pecado. A maioria de nós sofre, graças ao pecado sistêmico. A Bíblia não está brincando quando diz que sofremos pelos pecados de nossos pais por sete gerações. Ciclos de abuso, pobreza, degradação ambiental - todas essas coisas levam a teias do pecado, e eles levam a desconexão e morte.

No entanto, vivemos em um mundo governado pela física, biologia, química. Não há vida sem morte. Nós temos que comer e, quer que isso seja uma cenoura ou uma vaca, alguma coisa deve morrer para que algo viva. Pensar que a Terra e os seres humanos poderiam existir sem a morte é desconcertante.

Meu corpo é um ponto de conexão. Eu sou minha própria árvore do mundo, o eixo do meu universo. Eu sou tanto meu corpo e não o meu corpo. Se eu ganhar peso, ou perder as pernas, ou ficar queimado em um incêndio, eu ainda serei eu. E não eu. Mas esta personificação é tudo que eu sei neste momento.

Eu sei que, se eu precisar, eu posso suportar e me beneficiar da austeridade. Mas por que impô-la se eu não preciso? O mundo tem sofrimento o suficiente como é. A partir deste eixo corporal no universo eu me conecto com esse mesmo universo e com você. Eu não posso transcender a minha forma. Mesmo se eu alcançar a iluminação amanhã, eu ainda estou preso neste corpo. E que alegria e privilégio que é.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Por que levantamos espantalhos

“Confrontado com essa notícia, um sujeito racionalmente equilibrado dirá que a nova lei não é, em rigor, uma lei matrimonial. É uma expressão de selvageria, sancionando o abuso de crianças — ou, para não usar eufemismos, permitindo a violação pedófila para os grandes machos do Iraque, que temem sexualmente as mulheres adultas e por isso preferem caçar na escola primária. Mas o Ocidente chegou a um tal ponto de covardia moral e miséria intelectual que qualquer crítica sobre o Outro será sempre um "preconceito" — e, pior que isso, um crime”. [João Pereira Coutinho]

A notícia, no ocidente, de que no Iraque uma lei iria permitir o casamento a partir dos nove anos suscitou a reação esperada dos representantes da “nova” direita, dos arautos do conservadorismo, com um discurso reacionário, intolerante, preconceituoso e discriminador.

A pedofilia tornou-se uma das paranóias/neuroses do mundo contemporâneo. Na opinião deste escritor pagão que vos escreve, a violência física e sexual é crime, a idade deveria ser um agravante, não a base da lei.

Vamos separar o distúrbio sexual da questão de gênero, da identidade e preferência sexual. Confundir esses conceitos é um recurso baixo e covarde feito pelos defensores do conservadorismo. Ao aceitar o discurso e o apelo usando a condenação à pedofilia, concede-se poder e autoridade aos exponentes da direita e do conservadorismo. Ao dar razão ao discurso reacionário, se cede espaço para esses grupos invadirem nossos direitos e liberdades individuais, mas será tarde demais para tentar protestar.

Eu chamo a isso de um tipo de falácia do espantalho invertida. Ergue-se um espantalho, algo a que se apela para se propagar uma mensagem, deixando subentendido que, se o espantalho é algo que deve ser condenado e reprimido, então há uma regra, um padrão, uma “verdade absoluta”, a que se deve seguir, sem contestação, sem discussão, sem debate. Nós podemos concordar com conceitos universais, idéias que compartilhamos em comum, mas isso não significa que sejam idéias isentas de questionamento, discussão, debate e até de crítica.

Por exemplo, o conceito de que há uma faixa etária, um limite cronológico para que crianças e adolescentes saibam sobre sexo ou tenham sua sexualidade. Eu fico abismado com textos que praticamente idealizam a criança e adolescente como um ser assexuado, inocente e ingênuo. Em uma sociedade machista, patriarcal e sexista, as mídias de comunicação em massa exploram o sexo e a sexualidade da pior forma possível, levando a uma formação cada vez mais precoce da puberdade. O acesso à informação, sem filtro, sem educação sexual, de assuntos relativos ao sexo, fez com que garotas entre 14 a 16 anos começassem a ter experiências e relações sexuais [doenças venéreas, gravidez], inclusive com pessoas acima de sua faixa etária. Ou seja, há uma discriminação etária onde para algumas coisas o jovem é considerado apto e em outras não, portanto o limite é discutível e questionável.

Em termos mundiais, considera-se a idade de 18 anos o mínimo para que o casamento seja legítimo, mas a realidade social aponta para outras circunstâncias.

Nas leis civis, há o caso do jovem [homem/mulher] emancipado que, mediante sentença judicial, torna-se civil e penalmente responsável, podendo inclusive contrair matrimônio. Em muitas cidades do interior do Brasil, jovens “desonradas” são obrigadas a casarem-se. Pesquisando o oráculo virtual [google], pode-se ver que há casamento de crianças em países ditos civilizados e ocidentais. Eu encontrei casos na Grã-Bretanha, no Canadá, nos EUA. Ou seja, o casamento de “crianças” não é um fenômeno exclusivo de países subdesenvolvidos, ou de países muçulmanos, mas a Imprensa Ocidental fez a notícia com um evidente interesse sensacionalista, para ganhar audiência com a repulsa da opinião pública, eivada do moralismo cristão ocidental hipócrita.

Usa-se a notícia como um espantalho, que não reage, mas a repulsa direcionada ao “outro” nos faz esquecer-se do porque reagimos. Vemos no “outro” um reflexo daquilo que fazemos em privado e aquilo que pensamos ou desejamos no recôndito de nossas mentes. Se relações erótico-afetivas com jovens abaixo desse limite imposto e arbitrário não podem acontecer, então não deveria ter tantas figuras do alto escalão do Governo envolvidas com prostituição infantil. Se toda relação erótico-afetiva com jovens abaixo desse padrão arbitrário é pedofilia, muitos casais na Grã-Bretanha, Canadá e EUA devem ter o casamento anulado. Se uma religião deve ser abolida sob a acusação de patrocinar ou permitir a pedofilia, a Igreja Católica deveria ter encerrado suas atividades faz tempo.

Eu não creio que os articulistas que usaram a notícia para fazer o discurso reacionário tenha tido a preocupação de pesquisar ou de ver a realidade dos fatos. Um país é regulado por leis e o Iraque deve ter a autonomia e a soberania de legislar sobre seus cidadãos. Assim como no Brasil, no Iraque deve ter uma regulamentação civil para que um casamento produza efeitos legais e jurídicos. Recentemente, outros porta-vozes do conservadorismo, do reacionarismo, da concepção retrógada, como Malafaia, Bolsonaro e Feliciano, levantaram um espantalho contra a união homossexual, com quase os mesmos termos e argumentos que agora se ataca o Iraque. Na época, se alegou que se o Brasil permitisse o casamento homossexual em breve se permitiria o incesto, a zoofilia, a necrofilia e a pedofilia. A intenção, evidente, é o de causar terrorismo psicológico, para tornar mais fácil a disseminação das ideias retrógadas a respeito de sexo, gênero, identidade/opção sexual e relacionamento.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Por um 1º de maio pagão

Todos os anos as centrais sindicais reúnem os trabalhadores para comemorar o Dia do Trabalho ou o Dia do Trabalhador. Os meus amigos ateus, socialistas e comunistas que me desculpem, mas esse dia tem suas origens muito mais anteriores ao surgimento do sindicalismo.

“Na Roma antiga, o primeiro dia de maio caía durante o festival chamado Florália, dedicado à Flora, deusa da primavera e das flores. Era uma época de canto, dança e desfiles com muitas flores coloridas. As prostitutas romanas apreciavam especialmente esse festival, pois consideravam Flora sua deusa protetora.

Quando os romanos conquistaram outras terras, levaram seus costumes a esses lugares. No entanto, os romanos descobriram que nos países celtas o primeiro dia de maio já era celebrado no festival de Beltane. Para os celtas, o dia começava ao anoitecer. No início de 1.° de maio, nenhum fogo era deixado aceso; e quando o sol nascia, as pessoas acendiam fogueiras no cume dos morros ou sob árvores sagradas para receber o verão e a renovação da vida. O gado era levado para pastar, e invocava-se os deuses para que o protegessem. Logo, o festival de Florália fundiu-se ao de Beltane e se tornou o festival de Primeiro de Maio.

Para os povos escandinavos e os que falavam alemão, o festival de Walpurgis era o equivalente ao festival de Beltane. As festividades começavam na noite de Walpurgis, quando se acendiam fogueiras para afastar bruxas e maus espíritos. Outros europeus desenvolveram seus próprios costumes para comemorar o Primeiro de Maio, e muitos destes existem até hoje” [Torre de Vigia].

Curiosamente o sindicalismo “tem origem nas corporações de ofício na Europa medieval. No século XVIII, durante a revolução industrial na Inglaterra, os trabalhadores, oriundos das indústrias têxteis, doentes e desempregados juntavam-se nas sociedades de socorro mútuos.

Durante a revolução francesa surgiram idéias liberais, que estimulavam a aprovação de leis proibitivas à atividade sindical, a exemplo da Lei Chapelier que, em nome da liberdade dos Direitos do Homem, considerou ilegais as associações de trabalhadores e patrões. As organizações sindicais, contudo, reergueram-se clandestinamente no século XIX. No Reino Unido, em 1871, e na França, em 1884, foi reconhecida a legalidade dos sindicatos e associações. Com a Segunda Guerra Mundial, as idéias comunistas e socialistas predominaram nos movimentos sindicais espanhóis e italianos“ [wikipedia].

Ou seja, o sindicalismo surgiu na Idade Média com as corporações de ofício que “eram associações que surgiram na Idade Média, a partir do século XII, para regulamentar o processo produtivo artesanal nas cidades que contavam com mais de 10 mil habitantes. Essas unidades de produção artesanal eram marcadas pela hierarquia (mestres, oficiais e aprendizes) e pelo controle da técnica de produção das mercadorias pelo produtor. Em português, são chamadas de mesteirais.

Entende-se por Corporação de Ofício as guildas (associações) de pessoas qualificadas para trabalhar numa determinada função, que uniam-se em corporações, a fim de se defenderem e de negociarem de forma mais eficiente. Dentre as mais destacadas, estão as Corporações dos Construtores e dos Artesãos.

Uma pessoa só podia trabalhar em um determinado ofício - pedreiro, carpinteiro, padeiro ou comerciante - se fosse membro de uma corporação. Caso esse costume fosse desobedecido, corria o risco de ser expulso da cidade.

Cada corporação agrupava um determinado ramo de trabalho; por isso era chamada de corporação de ofício.

Em cada uma das cidades medievais existiam várias corporações de artesãos: dos tecelões, dos tintureiros, dos ferreiros, dos carpinteiros, dos ouvires, entalhadores de pedras, entre outros.

As pessoas geralmente ficavam 10 anos em cada oficio e seu mestre do oficio era obrigado a dar alimentos e moradia.

Essas corporações estabeleceram regras para o ingresso na profissão e tinham controle de quantidade, da qualidade e dos preços dos produtos produzidos, chamado de preço justo. Um artesão nunca poderia estipular um preço maior ou usar material de qualidade inferior ao de seu colega. Isso evitava a concorrência dos membros de mesmo ofício. A corporação também protegia seus associados proibindo a entrada de produtos similares aos produzidos na cidade em que se atuava. Eles também amparavam seus trabalhadores em caso de velhice, qualquer tipo de doença ou invalidez. Uma instituição típica da sociedade medieval foi a corporação de ofício. Eram associações que organizavam a produção e a distribuição de determinados produtos, reunindo profissionais do mesmo ramo, como por exemplo os sapateiros, ferreiros, alfaiates.

As corporações atuaram como incentivo para o aumento da produção. Os comerciantes manufatureiros foram obtendo cada vez mais lucros o que gerou um crescente acúmulo de capitais, nas mãos de uma nova classe, que passou a ser denominada de burguesia.

A grande finalidade das corporações era evitar a concorrência entre os artesãos, tanto locais como de outras cidades, e adequar a produção ao consumo local. As corporações fixavam o preço do produto, controlavam a qualidade das mercadorias, a quantidade de matérias primas e fixavam os salários dos trabalhadores” [wikipedia].

Portanto a organização do trabalhador precede as revoluções e idéias do século XVIII, assim como a festividade do primeiro de maio precede a festa do Dia do Trabalho. A revolta que marcou a data histórica para as centrais sindicais e para os partidos de esquerda aconteceu após a Revolta de Haymarket, que ocorreu no dia 4 de maio. O primeiro de maio foi oficializado como Dia Internacional do Trabalhador apenas depois da reunião da Internacional Socialista, quando o Socialismo começou a assimiliar e a cooptar o movimento e a organização do trabalhador para seus ideais. Não obstante, o trabalhador pertence a diferentes classes econômicas e possui diferentes opiniões, chega a ser um paradoxo que, em pleno Dia do Trabalhador, as centrais sindicais façam loteria de bens de consumo [como carro], objetos que são símbolos típicos de status da burguesia. Se perguntasse a um trabalhador brasileiro o que ele quer, a resposta seria “ganhar na megasena” ou “abrir o próprio negócio”, mostrando um sintomático fracasso do socialismo e do comunismo na “classe trabalhadora”.

A questão dos direitos, individuais, civis ou trabalhistas, são uma história à parte, mas pode-se dizer em termos gerais que os direitos passaram a fazer parte das leis em Estados Democráticos, onde as constituições desses países foram resultado de uma confluência de ideais capitalistas e socialistas e de ideais liberais e conservadores, do debate livre e democrático na sociedade, entre a sociedade e os governantes. Entendendo que um Estado Laico não é antirreligioso e que temos que honrar as nossas origens, eu bem que gostaria de que o primeiro de maio voltasse a ser uma celebração pagã.