terça-feira, 30 de junho de 2015

Os cultos de Dioniso

Dionísias Rurais - Celebravam-se no mês Posídon, o que corresponde, mais ou menos, à segunda metade de dezembro. São as mais antigas das festas áticas de Dionisio, mas pouco se sabe, até o momento, a respeito das mesmas. Realizavam-se apenas nos "demos", isto é, nos burgos da Ática, dependendo o brilho de tais festejos dos recursos de cada um dos cem demos que constituíam a terra de Platão. A cerimônia central consistia num kômos, quer dizer, aqui no caso, numa alegre e barulhenta procissão com danças e cantos, em que se escoltava um enorme falo. Os participantes dessa ruidosa falofória cobriam o rosto com máscaras ou disfarçavam-se em animais, o que mostra tratar-se de um sortilégio para provocar a fertilidade dos campos e dos lares. Aristófanes, em sua comédia engraçadíssima, Os Acarneus, nos deixou uma caricatura memorável dessas comemorações. Claro que tanto a falofória quanto os demais ritos das Dionísias Rurais precederam ao filho de Sêmele, mas este os incorporou integralmente, fazendo que se lhes esquecesse a idade milenar.

A partir do século V a.e.c., no entanto, as Dionísias Rurais foram enriquecidas com concursos de tragédias e comédias. Inscrições recentes provam que em muitos demos havia bons teatros, sobretudo no Pireu, Salamina, Elêusis, Flia, Muníquia e Tórico.

Lenéias - Eram celebradas em pleno inverno, no mês Gamélion, correspondente aos fins de janeiro e inícios de fevereiro, mas pouco se conhece também acerca dessa festa muito antiga do deus do vinho. O nome Lenéias, em grego (Lénaia), é uma abreviatura já comum em Atenas, pois que a designação oficial da festa era Dionisio do Lénaion, isto é, cerimônias religiosas dionisíacas que se realizavam no Lénaion, local onde se erguia o mais antigo templo do deus e, mais tarde também, um teatro. Segundo os arqueólogos que se têm ocupado da topografia da Atenas antiga, esse espaço consagrado ao deus do êxtase e do entusiasmo talvez se localizasse ou nas vizinhanças da antiga Ágora e da rampa que levava à Acrópole ou, ao contrário, na outra extremidade da rocha, que sustém a Acrópole, isto é, aos pés de sua fachada oeste. Se ainda se discute acerca da localização do Lénaion, nada de muito concreto existe a respeito de sua etimologia. A fonte tradicional de (Lénaion) é (Lenós), "largar", quer dizer, "tanque ou instalação, onde se espremiam as uvas para fabrico do vinho novo", mas a aproximação é de cunho popular.

Dionísias Urbanas - Celebravam-se na primavera, no mês Elafebólion, fins de março, e a elas acorriam todo o mundo grego e embaixadores estrangeiros. Duravam Seis dias. O primeiro era consagrado a uma majestosa procissão, de que a cidade inteira participava. Nessa procissão transportava-se a estátua do deus do Teatro, de seu templo, no sopé da Acrópole, até um templo arcaico de Baco, perto da Academia, de onde o ícone era solenemente levado e colocado, por fim, na Orquestra do Teatro, que, até hoje, tem o nome do deus e que fica ao lado do santuário, de onde a estátua fora retirada. Nos dois dias seguintes realizavam-se os concursos de dez Coros Ditirâmbicos, que com seus cinquenta executantes cada um, dançavam em torno do altar de Dionisio, na Orquestra. Os concursos dramáticos ocupavam os três últimos dias. Sendo três os poetas trágicos admitidos em concurso, reprsentava-se cada manhã a obra inteira de cada um deles, a saber, via de regra, no século V a.e.c. uma tetralogia: três tragédias (de assunto correlato ou não), seguidas de um drama satírico.

Embora nessas festas Dionísio imperasse inteiro, havendo por conseguinte, a quebra de todos os interditos, o Estado sempre os tolerou, uma vez que toda ruptura com tabus de ordem política, social e sexual visava não apenas à imprescindível fecundidade e à fertilidade, mas era algo que atingia tão-somente o mundo da sensibilidade, sem chegar à reflexão, como na tragédia.

O primeiro dia das Antestérias denominava-se (Pithoiguía), vocábulo proveniente de píthos, "tonel", e oignýnai, "abrir": abriam-se os tonéis de terracota, em que se guardava o vinho da colheita do outono, e transportavam-nos até um Santuário de Dionísio no Lénaion, que só se abria por ocasião dessas festas da primavera. Dessacralizava-se o vinho novo, quer dizer, levantava-se o tabu que ainda pesava sobre a colheita anterior e, após uma libação a Dionisio pela boa safra, dava-se início à bebedeira sagrada. Possivelmente, como nas Dionísias Rurais e nas Lenéias, uma das características fundamentais de Dionisio, "deus do povo", é sua universalidade social.

O segundo dia chamava-se (khóes), de (khóos), cântaro, cuja fonte é o verbo (khéein), "derramar". Era o dia consagrado ao concurso dos beberrões. Vencedor era aquele que esvaziasse o cântaro (três litros e um quarto) mais rapidamente. O prêmio era uma coroa de folhagens e um odre de vinho. Nesse mesmo dia, em que se celebravam as khóes, organizava-se uma solene e ruidosa procissão para comemorar a chegada do deus à polis. Mas, como Dionisio está ligado, ao elemento úmido, por ser uma divindade da vegetação, supunha-se que ele houvesse chegado a Atenas, vindo do mar. É, por esse motivo, que integrava o cortejo uma embarcação, que deslizava sobre quatro rodas d euma carroça, puxada por dois Sátiros.

Na embarcação via-se o deus do êxtase, empunhando uma videira, ladeado por dois Sátiros nus, tocando flauta. Um touro, destinado ao sacrifício, acompanhava o barulhento cortejo, cujos componentes, provavelmente disfarçados em Sátiros e usando máscaras, cantavam e dançavam ao som da flauta. Quando a procissão chegava ao santuário do deus, no Lénaion, havia cerimônias várias, de que participavam a (Basílinna), isto é, a esposa do Arconte Rei e catorze damas de honra. A partir desse momento, a Basílina, a Rainha, herdeira da antiga rainha dos primeiros tempos da cidade, era considerada esposa de Dionisio, certamente representado por um sacerdote com máscara. Subia para junto dele na embarcação e novo corjeto, agora de caráter nupcial, conduzia o casal para (bukoleîon), etimologicamente, "estábulo de bois", mas, na realidade, uma antiga residência real na parte baixa da cidade. Ali se consumava o hieròs gámos, o casamento sagrado entre o "deus" e a rainha, conforme atesta Aristóteles, Constituição de Atenas. Observe-se que o local escolhido, o Bucolion, atesta que a hierofania taurina de Dionisio era ainda um fato comum. De outro lado, sendo a união consumada na residência real e apresentando-se Dionisio como rei, o deus estava exatamente exercendo a função sagrada da fecundação. Essa hierogamia era, na realidade, o símbolo do casamento, da união do deus com a pólis inteira, com todas as consequencias que daí poderiam advir.

O terceiro dia intitulava-se (khýtroi), "vasos de terracota, marmitas", cuja fonte é ainda o verbo (khéein), "derramar". Chegada a noite, todos gritavam: "Retirai-vos, Queres, as Antestérias terminaram".

Autor: Junito de Sousa Brandão.

sábado, 27 de junho de 2015

Guia de campo para perder a religião

Eu leio o Patheos, de preferência o canal do Paganismo, mas leio também os outros canais. Um deles é bem curioso e engraçado, é o canal do Cristianismo Progressivo, seja lá o que isto for. Uma das colunas deste canal tem o titulo sugestivo de “Síndrome Pós Traumática de Igreja” mantida por Reba Riley. Ela publicou um texto de coautoria de Susan Gray Blue intitulado como “Guia de Campo para Perder a Religião”. Isto era para ser um exercício de reflexão, mas a coautora e a responsável da coluna não foram bem sucedidas.
O exercício é interessante, curiosamente eu não achei nada similar entre ateus, céticos e pagãos. Parece com um guia de viagem, com dicas e passos a seguir, com 20 fases. Eu vou fazer este exercício, eu espero que meu dileto e eventual leitor me acompanhe.
1 – Atravesse o denso matagal do fundamentalismo.
Religiões de livro tem um denso matagal, pois baseiam suas crenças naquilo que está registrado em um texto sagrado. Na maioria das vezes esta leitura é feita literalmente, ao pé da letra, não é uma questão de interpretação, de metáfora, de alegoria, afinal estas crenças são baseadas no sentido de que o texto sagrado é uma revelação divina, portanto, a mais completa verdade, inquestionável e infalível. Por mais que tentem flexibilizar alguns aspectos da doutrina, crentes destas religiões em algum momento terão que lidar com o núcleo duro de suas crenças e nesse momento não há meio termo, ou se submete, ou se liberta. O Paganismo Moderno tem livros sagrados, tem textos filosóficos, mas os seus muitos caminhos podem ser definidos como religiões de revelação pela experiência pessoal. Espera-se, ou pelo menos se incentiva, que o buscador leia, questione, conteste. Em nenhuma outra religião a liberdade e a autonomia do praticante são tão elogiadas e encorajadas. Todos os pagãos modernos têm a autoridade e a autorização para compartilhar seus pensamentos, opiniões, práticas, críticas, visões e teologias.
2 – Prepare um cantil de chocolate ou vinho.
Aqui eu devo supor que a autora se confundiu. A preparação para uma viagem ou desbravamento do matagal fundamentalista vem antes da tentativa de atravessá-lo. Mas é curioso que a autora recomenda que o buscador esteja preparado para os desafios com um cantil cheio de chocolate ou vinho. Para as religiões de livro, tudo que remete a algum tipo de prazer, é proibido, é condenável, é impuro. No Paganismo Moderno, o corpo, o desejo, o prazer, são ferramentas para comungar com o divino. De vez em quando temos grupos e sacerdotes que pisam na bola, mas não podemos esquecer que muitos vieram desta cultura judaico-cristã, ou tiveram traumas de infância, ou simplesmente são humanos falíveis.
3 – Atravesse o rio da separação.
O dileto leitor deve lembrar quando eu disse que eventualmente os crentes das religiões de livro haverão de encontrar um ponto onde não há possibilidade de negociação. Atravessar o rio da separação é um destes pontos. Para o crente da religião de livro, toda e qualquer outra forma de espiritualidade, crença ou religião é um engodo, um erro, “obra do Diabo”. Eu poderia falar de inúmeros casos na história e de noticias da atualidade que demonstram bem este fato, mas vou poupar o dileto leitor. O Paganismo Moderno está no manguezal do rio da separação. Este é um terreno difícil de lidar, afinal, nada mais atraente do que a falsa noção de que o Paganismo Moderno é um “vale tudo”. Nós constantemente falamos do quanto somos includentes, tolerantes. Mas não dá para conciliar o conceito de “tradição” com o falso conceito de que “toda religião/tradição evolui”. Não dá para conciliar o conceito de iniciação, linhagem, treinamento formal com o conceito enganoso de que cada um pode seguir seu próprio caminho. O pagão moderno sabe que o divino está ao nosso redor, portanto, a revelação está ao nosso alcance. O que me incomoda é a constante busca de pagãos modernos para ter seu caminho reconhecido, validado, aceito, referendado.
4 – Abandone toda certeza.
Indubitavelmente o crente da religião de livro irá fracassar nessa fase. As religiões de livro estão baseadas na certeza de que o texto sagrado é uma revelação de Deus. O descrente tem farto material para balançar estas falsas certezas, muito embora ele mesmo tenha a mesma necessidade da certeza que o crente da religião de livro tem. Pagãos se divertem abalando as falsas certezas dos descrentes. Aqui nós temos um terreno delicado e sensível. A Ciência tem a teoria quântica que se aproxima vertiginosamente do esoterismo, mas o descrente é incapaz de fazer essa leitura. No entanto, a margem de interpretação da teoria quântica não nos permite fazer qualquer leitura a nosso favor, nós nem podemos cometer tal desonestidade, afinal, nós não estamos atrás da certeza, mas da experiência.
5 – Remova todo preconceito.
Aqui eu alterei o original para fazer mais sentido. O crente das religiões de livro adora julgar os outros. Por isso que eu acho difícil, senão impossível, o crente das religiões de livro atravessar o rio da separação. Para eles, qualquer um que não se encaixe nos ditames e doutrinas da crença é um pecador, um perdido, uma pessoa que precisa ser salva e redimida pela revelação dada pelo texto sagrado. Eu perdi a conta de quantas vezes eu leio textos de crentes e de seus sacerdotes julgando e condenando outro ser humano por suas opções, preferências, escolhas. Aqui o Paganismo Moderno tem um pé na lama. Entre nós não faltam casos polêmicos e controversos. Ao menos nós somos sinceros e honestos ao ponto de não tentarmos esconder, justificar ou concordar. Ao invés de evitar em falar no assunto, nós discutimos, discordamos, contestamos as ações e discursos até de sacerdotes.
6 – Leia vorazmente por cinco anos.
Nessa fase, eu comecei a rir. Eu consigo contar nos dedos os crentes de religião de livro que realmente tenham lido e estudado muito. Aqueles que leem e estudam muito acabam se afastando de sua igreja, quando não se tornam ateus ou adotam outra religião. No Paganismo Moderno, “ler muito” é praticamente um princípio, ou pelo menos devia ser. Eu também cansei de me deparar com gente que se diz pagã, mas cuja única fonte de estudo seja o Wikipédia ou algum livro de alguma celebridade pagã. Minha péssima reputação na Comunidade Pagã é um corolário desse fato.
7 – Pare de confundir medo camuflado com amor, preconceito com sabedoria, literalismo com verdade.
A autora começou a cair escada abaixo. O preconceito é uma forma de medo e crentes de religião de livro vão tentar cobrir seus preconceitos sob a capa do amor, da compaixão e da piedade. Mas no fundo essa fachada, que pretende ser tolerante e inclusa, é uma estratégia para o veneno fundamentalista. A pessoa, fragilizada, se sente acolhida, protegida, aceita. Momento propício para a doutrinação, a lavagem cerebral, o literalismo, pois o desesperado quer a certeza e os proselitistas lhe fornecerão. A falsa certeza providencia um falso consolo, mas também uma verdadeira fonte de histerias e paranoias. No Paganismo Moderno, há inclusão, ainda que aos trancos e barrancos. Falamos em amor, mas ainda certos assuntos são evitados em público. Falamos em sabedoria, mas nos limitamos a repetir os discursos de alguma celebridade pagã. Falamos que não temos um livro sagrado, mas vivemos citando trechos e frases como se fossem revelação divina. Esta é uma lama que ainda temos que lidar.
8 – A verdade deve ser revelada lentamente, senão ficaremos cegos.
Eu leio uma contradição aqui. Afinal, se o crente de religiões de livro está querendo abandonar toda a certeza, não cabe falar em “revelar a verdade”, visto que são múltiplas. A autora não diz como ou de que jeito se pode levantar os véus e eu não acredito que um crente de religião de livro esteja pronto, preparado ou desejoso em encarar a Luz. No Paganismo Moderno isso equivaleria ao “eureca”, mas como a revelação vem pela experiência pessoal, a epifania somente pode ser entendida e compartilhada quando outro interessado trilhar a mesma trilha, praticar a mesma prática, em suma, receber o treinamento e a iniciação formal. Então muita calma com o andor ao ler afirmações vindas de celebridades pagãs. O geral não é específico e o específico não é geral, cada um no seu quadrado.
9 – Cuidado com a lógica circular e a validação externa.
No tempo em que o Orkut era uma febre e a rede social era uma novidade eu frequentei uma comunidade chamada Evangelize-me Se For Capaz. O que mais se encontrava ali era crente de religião de livro tentado evangelizar, oferecer a graça da salvação, dar a redenção aos perdidos. O que era uma tarefa ingrata e infrutífera, pois o livro sagrado é fonte de controvérsias e contradições. Impossibilitados de construir um bom caso, recorriam amiúde à lógica circular e eventualmente a alguma validação externa. Como lhes faltava a envergadura e o conhecimento, chegava a ser covardia a forma como eram massacrados. Curiosamente, quando interpelados, os descrentes me decepcionaram diversas vezes por recorrer às mesmas estratégias dos crentes, para defender suas convicções. No Paganismo Moderno, eu me sinto uma rara exceção dentro de um cenário desprovido sequer do conhecimento mais básico.
10 – Faça uma fogueira com suas crenças.
Geralmente os crentes de religião de livro gostam muito desta fase, mas as fogueiras foram alimentadas com as crenças, livros e pessoas de outras religiões. Esta proposta é bem chocante, se levarmos em conta que religiões de livro são baseadas na certeza e em um texto sagrado. Nisto consiste meu estranhamento com fenômenos recentes observados no Cristianismo, vertentes mais inclusivas, menos literalistas e mais progressistas apareceram nos últimos anos e aqui cabe a pergunta: até quanto se pode dobrar uma religião de livro até que se chegue ao seu núcleo duro ou ao ponto da religião se tornar uma paródia de si mesma? Nós gostamos de fogueiras e não faltam celebridades que se queimam. Este é um desafio no Paganismo Moderno também, afinal, vivemos tropeçando em nossos conceitos quando nos deparamos com ações e palavras que não coadunam com a mensagem que passamos ao público geral.
11- Faça uma autoanálise.
Eu não acredito que um crente da religião de livro consiga passar por esta fase. Sua crença é baseada na certeza de que o texto sagrado é uma revelação divina, inquestionável. A ideia de procurar internamente, por sua alma, sua verdade, é uma mensagem que combina mais com o esoterismo. O autoconhecimento é uma ferramenta básica aos pagãos modernos, mas não é a única, afinal, sem a prática, sem a busca do divino na natureza, corremos o risco de embarcar em delírios místicos.
12 – Faça um esforço em ser ateu [opcional].
Aqui muito descrente deve estar dando risada. Ser ateu não requer muito esforço. Em muitos casos, é o resultado mais imediato depois de se ler e estudar muito. No entanto, o descrente não superou a necessidade de certeza, apenas trocou os textos sagrados das religiões pelos textos sagrados da ciência. Para o Paganismo Moderno, é preciso um grande esforço em ser monoteísta, o que infelizmente acontece, com as religiões da Deusa e o Dianismo.
13 – Permita-se surpreender com outras fontes.
Aqui o descrente deve estar gargalhando, afinal é nítido e notório a forma como os crentes de religião de livro distorcem e deturpam a Ciência [Design Inteligente] para embasar suas crenças. O Paganismo Moderno comete uma falha semelhante ao recorrer às explicações da teoria quântica, um recurso temível, por mais que esse ramo da Ciência se aproxime do esoterismo. Entretanto, como nós não temos um livro sagrado e não temos uma autoridade central, nós temos as mais diversas opções para explorar e descobrir o divino.
14 – Passe pela noite da alma.
Levando em conta os tópicos anteriores, eu acho que um crente de religião de livro não consegue passar por isso; mas quando passa, acaba ou se tornando ainda mais fundamentalista, ou acontece uma cisão. Ao contrário do que descrentes afirmam, a Ciência não fornece certezas ou respostas definitivas: tomar as teorias científicas como se fossem a verdade absoluta não deixa de ser uma forma de fundamentalismo. Em algum momento, todo ser humano passa por esta experiência. O homem recria a realidade ao reinterpretar conforme um determinado padrão de pensamento ou filtro de perspectiva, mas eventualmente acaba se deparando com algo que não se encaixa em seus moldes. Quando nossas ilusões e falsas certezas se desfazem, mergulhamos [melhor dizer emergimos?] em uma realidade maior e mais ampla do que podemos compreender. Nisto consiste o caminho iniciático, a epifania e a iluminação. Como chegar a isto existe diversos métodos, que são os múltiplos caminhos do Paganismo Moderno.
15 – Evite recaídas.
Esta é uma pedra de tropeço em qualquer espiritualidade, crença ou religião. Quando adotamos ou nascemos em uma determinada religião, tendemos a nos acomodar. Mesmo diante de desafios, obstáculos, contradições, controvérsias, escândalos, nosso comodismo e conformismo tenderão a procurar uma explicação, uma justificativa, não prosseguimos com nosso crescimento e conhecimento [espiritual, material, mental] e o resultado dessa evasão é que acabamos por regredir, recusando repensar nossas falsas certezas. Infelizmente não é difícil vermos pagãos modernos voltarem ao próprio vômito.
16 – Esqueça o perfeccionismo.
Este complexo tende a acompanhar a necessidade de certeza e de que o texto sagrado é a mais absoluta verdade. Pois é exatamente aqui que desmorona toda tentativa dos crentes de religião de livro em distorcer a Ciência [Design Inteligente]. Partindo do pressuposto que exista “perfeição” na natureza, o crente da religião de livro afirma que isto somente é possível por que há um Criador. Nada mais falso, enganoso e longe do que acontece na natureza. Ou seja, desafiar a noção de que a natureza é “perfeita” por que é criação de um Deus é parte do núcleo duro. Toda a questão do pecado, da culpa e da necessidade de redenção, de salvação, é a busca dessa “perfeição” diante dos olhos deste suposto Criador. No Paganismo Moderno, vemos a natureza como gerada, não criada. Os fenômenos da natureza são consequência das ações de energias, de forças, que são conscientes [por isso chamamos de Deuses] e que têm suas próprias vontades. O único lugar do perfeccionismo no Paganismo Moderno é na ortopraxia adotada pela Wicca Tradicional.
17 – Recobre sua autoestima.
Este é um passo importante para todo ser humano. Crentes de religião de livro, nascidos ou convertidos, acabam desenvolvendo pouca autoestima e isso tem muito a ver com a mania do julgamentalismo [preconceito, dogmatismo, literalismo] que permeia essas religiões. Toda e qualquer jornada espiritual ou religiosa não pode ser iniciada sem alguma autoestima. Infelizmente os pagãos modernos ainda clamam por reconhecimento, aceitação e validação de suas práticas e crenças. Infelizmente pagãos modernos ainda criam cultos à personalidade em torno das celebridades pagãs.
18 – Entre em metamorfose.
Geralmente a metamorfose é a passagem de um estado baixo para um estado elevado. A analogia da lagarta e da borboleta é uma falsa analogia. A analogia é falsa, pois a borboleta e a lagarta é o mesmo bicho, a metamorfose faz parte de sua espécie, não há qualquer alteração, acréscimo ou perda em seus gens. Nem sempre estados posteriores são melhores que estados anteriores, senão o civilizado seria necessariamente melhor do que o selvagem, o “cristão” seria necessariamente melhor do que o “pagão”. Quando falamos no caminho iniciático, na epifania, na iluminação, a metamorfose é uma analogia cabível, pois não houve alteração em nossa essência, natureza, nós apenas recuperamos nossas verdadeiras identidades.
19 – Conecte-se com sua alma.
Esta certamente é uma fase onde os crentes da religião de livro vão falhar. A busca deles não é pelo contato com sua alma, mas com o Profeta, o Ungido, o Messias, o Deus. As religiões de livro são bastante incisivas em colocar a alma individual humana como indigna, imperfeita, pecaminosa. Apenas negando sua identidade, sua individualidade, sua personalidade, é que o homem pode superar suas falhas, seu defeito carnal, para então viver na plenitude da existência divina, muito embora não haja mais um indivíduo para apreciar esse Paraíso. No Paganismo Moderno essa conexão com a alma é um dos passos básicos. Outro passo é ter uma conexão com a natureza. Ler e estudar ajudam e auxiliam na compreensão de como percebermos e interpretarmos essa conexão de nossa alma com a natureza. Pela prática e experiência pessoal, percebemos o divino, temos a iluminação e vislumbramos a epifania. Nada mais é necessário.
20 – Festeje sua vitória.
Sinceramente eu ainda não sei como um crente de religião de livro tem algo a comemorar. Os poucos que empreenderam essa jornada acabaram repudiando a crença que tinham. Este felizmente não é o caso para os pagãos modernos. O máximo que acontece é o de percebermos que covens, grupos, fóruns, tradições, linhagens, são apenas outras formas de caixinhas. Perceber que o divino está muito além e aquém de quaisquer sistemas ou fórmulas é reconfortante e libertador. Esta é uma boa parte. Mesmo que não consigamos atingir nossos objetivos. Mesmo quando nos sentirmos traídos, enganados, abandonados. Percorremos o caminho, lutamos nossa luta, servimos aos Deuses. Podemos comemorar nossas vitórias e derrotas, pois ambas fazem parte do aprendizado. Havemos de encontrar o Deus e a Deusa, no fim do caminho. Havemos de reencontrar nossos ancestrais no Grande Banquete. O acesso ao mundo espiritual, ao mundo divino não é monopólio e privilégio dos sacerdotes, sejam estes quais forem. O caminho não é monopólio e privilegio de nenhuma forma de espiritualidade, crença ou religião. Sejam quais forem as fórmulas, sistemas, doutrinas, segredos, ainda assim cada um, através de sua prática e experiência pessoal, chegará ao mesmo destino.
No que cabe a este escritor, eu incluiria mais uma fase ou passo. Que eu noto estar em falta em muitas das espiritualidades, crenças e religiões. Não é sentado em um banco de igreja que vai te tornar um cristão. Não é recitando o Corão na mesquita que vai te tornar um muçulmano. Não é celebrando o Rosh Hashana que vai te tornar um judeu. Não é citando as sutras de Sidarta que vai te tornar um budista. Não é colecionando ordenações, iniciações, tradições e linhagens que vai te tornar um sacerdote pagão. Passo 21: Pratique o que prega.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Fidelidade divina

Um clichê bastante comum entre os evangélicos é afirmar que Deus é Fiel. Lendo a Bíblia, essa afirmação cai no vácuo. Em diversos trechos este Deus declara que é Deus do povo de Israel e de nenhum outro. Em diversos trechos este Deus declara que jamais iria abandonar o povo de Israel, mas nos livros dos profetas este Deus diz que iria voltar suas costas ao povo de Israel e chamar a outro povo para ser Dele.
Mas e os Deuses Antigos? Eles e Elas são fiéis? Os Deuses Antigos mantinham suas alianças com o povo que os adorava? Os Deuses Antigos deserdava seu povo ou adotava outro povo como sendo Deles? Os Deuses Antigos eram ciumentos e exigiam culto exclusivo?
Lendo a história antiga, podemos ver que os Deuses Antigos não eram problemáticos ou complexados como o Deus Bíblico. Os povos e culturas que os adoravam tinham toda a liberdade de conhecer e adorar a outros Deuses, de outros povos e culturas. Em verdade, muitos dos Deuses Antigos acabavam sendo conhecidos e adorados por outros povos. Cultos como o de Ishtar, de Isis, de Mithra, de Dioniso, se espalharam pelo mundo conhecido e chegaram a se tornar religiões de massa. Os Deuses Antigos estavam bem presentes, no mundo, na sociedade, na cultura e na humanidade. Quem voltou as costas aos Deuses Antigos foi o ser humano quando, por orgulho e vaidade, achou não apenas que podia viver sem os Deuses, mas também chegou a questionar a existência Deles.
Enquanto o Deus Bíblico demonstrava sua insegurança com suas ameaças, vinganças e violência, os Deuses Antigos deixaram o ser humano seguir com a saga que escolheram. O sábio diz que quando os Deuses Antigos quando querem nos castigar, atende a nossos desejos.
A humanidade cresceu e se desenvolveu muito ao longo dos anos. A Terra deixou de ser o centro do sistema solar. O Sol deixou de ser o centro da galáxia. Mas o Homem se manteve no centro da existência. Quando o Homem se faz a medida de todas as coisas, a alma humana sofre com violência, ódio, intolerância, preconceito. Avançamos muito na ciência e tecnologia, mas recuamos na sociedade e na humanidade. Os Deuses Antigos devem ter se divertido bastante e dado boas risadas com o Teatro do Absurdo que temos encenado.
Quando a humanidade esgotou o egoísmo, o individualismo, o orgulho, a vaidade, o complexo com a figura paternal, os recursos naturais que mantêm nossa existência, não foi na ciência nem na filosofia que encontramos a solução para o vazio que estávamos sentindo. A humanidade acreditou no niilismo e não há solução dentro do nada. Apenas se pode encontrar uma solução naquilo que é existente, perpétuo, imortal e divino.
Como crianças rebeldes que correm de volta para as mães na necessidade, a humanidade se volta para os Deuses Antigos. A despeito dos séculos e de não termos mais os mesmos vínculos de sangue, os Deuses Antigos ainda nos reconhece como seus filhos. Ainda que o sacerdócio tenha sido abolido, aos poucos os Deuses Antigos vão refazendo os vínculos com a humanidade, nos recordando de nossa essência e origem ligadas com a Natureza.
Os Deuses Antigos não nos condenaram, não nos julgaram, não nos renegaram. Seus sacerdotes não ordenaram massacres, guerras, genocídios. Seus templos não promovem o ódio, o preconceito, a intolerância. Esta é a verdadeira fidelidade divina.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A fantástica fábrica da religião

Posso te contar um segredo? Algo que eu raramente digo em voz alta, algo que eu muitas vezes me pergunto que pode ser o elefante na sala?
Às vezes, quando as coisas ficam tranquilas ou duras; às vezes, quando eu me sinto sobrecarregada com tudo, eu me pergunto: "E se nós estivermos inventando tudo isso?"
O que quero dizer com "tudo"? Eu quero dizer os Deuses, os espíritos, o esforço, as máscaras e nuances, as performances de normalidade e cultura: tudo mesmo.
Finja até conseguir
Quantos de nós passam pela vida se sentindo uma fraude? Como se, a qualquer dia, a qualquer momento, alguém vai sugerir que você não está usando qualquer roupa ? Eu me senti desse jeito e ainda sinto às vezes. Você pode se surpreender com o número de professores universitários - pessoas com doutorado, que são especialistas em seus campos - que também se sentem assim. Eu ainda não posso acreditar que as pessoas não apenas leem o meu blog, mas continuar  me incentivando a escrever. Quer dizer, o que eu sei ?
E se eu estou fabricando tudo isso? E se eu apenas estou solitária, com uma ativa imaginação, sensível demais para funcionar no "mundo real"? Você não estaria errado se achar isso. Mas o "mundo real" é criado também. Fazemos dinheiro, dívida e gênero. Criamos hierarquias, popularidade e estilo.
"Fingir até realizar" não é viver uma mentira, muitas vezes é um grande mecanismo de defesa, uma conversa pessoal estimulante, ou uma forma de experimentar uma atitude, uma idéia, ou algum item físico para aumentar. Às vezes é um glamour.
Ocasionalmente, é aconselhável deixar o glamour ir e perguntar: O que eu tenho assimilado e o que eu preciso deixar de lado? Eu quero continuar usando isso? O que é a coisa verdadeira ? Os momentos que nos sentimos como uma fraude são humilhante, mas eles tornam os momentos brilhantes da profunda verdade mais preciosos.
Teologia Narrativa
Outra maneira de fazer as coisas é contar histórias. Que história que você está contando? De que história você é parte?
Há um tipo de teologia pós-moderna, a teologia narrativa, que olha para a maior narrativa cultural numa determinada religião. Encontramo-nos recontando as histórias que nós escolhemos fazer parte e, em seguida, por meio de nossas vidas, continuar essa história. Costumo rir com os pagãos que parecem estar vivendo o Senhor dos Anéis, de Tolkien. Eu costumava zombar desta tendência entre os pagãos a se envolver em uma fantasia até que eu percebi que todos nós estamos vivendo as histórias que fazemos parte. Alguns de nós mudou a narrativa, o narrador, até mesmo o gênero.
Uma das coisas bonitas que eu vi no Neo-paganismo é a idéia de que podemos abraçar uma narrativa fora do padrão histórico e estético dominante. Se tudo é feito de qualquer maneira, eu quero escolher a fantasia que eu estou vivendo. Terá mais força para você se você prefere um mundo quase medieval! Não há nada de errado ou bobo em se esforçando para alinhar sua vida diária com virtudes heróicas, contos de aventuras épicas e batalhas com dragões, quem entre nós não tem alguns animais para matar, domomesticar, ou ser amigo?
Re/encantar enquanto se Re/tece a narrativa
Eu quero uma vida cheia de encantamento, dedicação, beleza, relacionamento, reciprocidade, hospitalidade, resistência e libertação. Estes são valores que associamos com a Bruxaria e o melhor no Paganismo. Eu quero acreditar que as vozes que ouvidmos e os espíritos vistos são reais. Eu quero acreditar que a minha intuição e meus sentimentos são tão valiosos quanto a minha razão. Eu quero um mundo onde existem Deuses, onde os reinos são interdependentes.
Então, eu ajo como se essas coisas são verdadeiras. Alguns dias eu sinto como se a meditação é nada mais do que uma ladainha mental de listas de tarefas e o sofrimento nas minhas pernas. Claro, eu tenho lido vários artigos sobre a ciência da meditação. Alguns dias fazendo oferendas em meus altares, dizendo bom dia para os Deuses e espíritos me faz sentir como se eu desperdiçasse dinheiro que eu não tenho em flores e conversando com uma cômoda.
Eu prefiro ter um mundo onde a terra é compreendida, onde as forças de vida, morte e libertação são honrados, onde a beleza é cultivada. Quero prateleiras e cantos preenchidos com penas, pedras e ícones. Eu quero feriados que reflitam o fluxo de nossas estações e comemoram a narrativa da história que eu estou vivendo - não a história que meus vizinhos estão vivendo.
Somos criativos, criando seres criados. I corajosamente escolhi desestabilizar a narrativa que me foi dada e eu prossigo, escrevendo uma nova narrativa com cada passo que dou.
Autora: Niki Whiting, publicado no Patheos.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Toda forma de amor

Algo de estranho está acontecendo com o mundo ocidental cristão. Quanto mais a humanidade adquire conhecimento, mais os cristãos fundamentalistas reagem.
O Cristianismo surgiu e cresceu entre as minorias, guetos e periferias das grandes cidades. Em algum momento os ensinamentos deixados pelo Cristo foram esquecidos e aqueles que ocupavam grandes cargos dentro da Igreja tornaram-se soberbos, orgulhosos e gananciosos.
Quando conquistaram o poder, os doutores da Igreja usaram e distorceram os ensinamentos deixados por Cristo. A Igreja de Cristo dividiu-se em três principais vertentes: Católicos, Protestantes e Ortodoxos. Dentro da Igreja interesses escusos causaram a divisão entre os cristãos, causando guerras entre cada facção.
Cada vertente usou diversos expedientes, para aumentar seu poder, influência e prestígio na sociedade ocidental. Nesse processo, outras guerras, invasões, destruições e genocídios aconteceram em nome de Cristo. Pelo medo, pela força, pela ignorância, pela censura, pela opressão e repressão, os doutores da Igreja impuseram um dogma e uma doutrina. Como resultado, a sociedade ocidental se tornou doente em tudo que se relaciona com o corpo, o desejo, o prazer e o sexo.
Somente após a humanidade ter passado por grandes perdas que foi possível buscar por alternativas. A Igreja não conseguia mais dominar o espírito humano. A humanidade queria ser livre e ser feliz. A Igreja não tinha mais como responder ou consolar. O Deus Cristão continuava inacessível e silente. A humanidade redescobriu outras formas de espiritualidades, de crenças, de religiões, de culto ao divino.
O despertar surgiu na grande nação construída por Puritanos e Protestantes. Em solo americano aconteceu a Contracultura. A Nova Era, o Esoterismo, o Misticismo e o Ocultismo ressurgiram entre artistas, estudantes e professores. O Paganismo Moderno pegou carona nesse movimento, cresceu, ganhou popularidade e muitas vezes ele é confundido com seus associados.
Outras ideias, espiritualidades, crenças e religiões impulsionaram os Movimentos Civis, pelos direitos das mulheres, pelos direitos dos negros, pelos direitos dos imigrantes e outras minorias. Foi possível estudar, explorar e analisar, pela primeira vez, a sexualidade humana. A humanidade pode contestar e questionar a doutrina, o dogma e o discurso oficial da Igreja sobre relacionamento, gênero e sexo. A Igreja perdera toda sua credibilidade, autoridade, poder e influência, inclusive pelos péssimos exemplos dados por seus representantes.
O Cristianismo está em uma encruzilhada. Grupos que se sentem acuados e ameaçados reagem com fúria, o que apenas acelera mais o ritmo das mudanças. Outros grupos, que tentam retomar o sentido do Evangelho, tentam resgatar o sentido original dos ensinamentos deixados por Cristo, oferecendo um espaço mais inclusivo e menos fundamentalista. No Governo, partidos políticos oscilam entre uma e outra tendência, causando um reflexo político em leis e pronunciamentos. Na Sociedade, os indivíduos oscilam conforme seus lideres políticos e religiosos. A radicalização tem causado ódio, intolerância e violência, colocando o cristão ocidental em um dilema. Quem se considera cristão não pode odiar, pois Cristo ensinou que se deve amar. Onde não há respeito, tolerância, compreensão não há amor. Ou o cristão segue a Cristo ou a Igreja.
Aquilo que se conceituou e se consolidou como Cristianismo está sendo desafiado e contestado por Cristo. Quem insiste no ódio, na intolerância e na ignorância não merece ser considerado cristão. A estes, a humanidade relegará à ignomínia ou ao esquecimento.
Para muitos que procuram pela felicidade e liberdade, existem diversas alternativas. O que não faltam são formas de espiritualidade, crenças e religiões. Para muitos, que querem respeito para sua identidade, preferência e opção sexual, existe o Paganismo Moderno. Aqui nós dizemos que toda forma de amor e prazer pertencem aos Deuses.

domingo, 21 de junho de 2015

Apontamentos sobre o solstício

Em diversos povos o solstício foi e é comemorado, embora marcando estações diferentes, conforme o hemisfério. Algo que deixa muito pagão moderno de cabeça para baixo, pois nós vivenciamos uma espiritualidade voltada aos ciclos da natureza e na observação das estações. Enquanto um pagão moderno no hemisfério norte comemora o solstício de verão, o pagão moderno no hemisfério sul comemora o solstício de inverno. 

Em termos científicos, é a terra quem se move em torno do sol, seguindo uma órbita, ora mais próxima, ora mais longe do sol. Cada uma dessas posições extremas é chamada de solstício. A órbita da terra é elíptica, então as posições de distância equivalente são chamadas de equinócios. 

O sol, por sua vez, tem seu movimento dentro da Via Láctea, a galáxia onde fica nosso sistema solar e a galáxia é um fenômeno astronômico composto de diversos sóis e planetas que giram em espiral. O curioso, interessado e simpatizante deve achar estranho que o pagão moderno fale de corpos celestes quando nossa espiritualidade está ligada com a natureza. Natureza não se limita às coisas naturais deste mundo [se me permitem a redundância], mas também aquilo que está fora deste mundo, como o sol, a lua, as estrelas. Mas como eu escrevi no texto “Nada de novo sob o sol”, o assunto fica quente [se me permitem a péssima piada] quando nos referimos aos Deuses ou Deusas associados ao sol. 

O aparente conflito é desbaratado quando consideramos que o Deus ou Deusa, ainda que porte os mesmos atributos e símbolos de outro Deus ou Deusa, eles estão ligados a uma determinada localidade e possuem vínculos com uma determinada etnia. 

Considerando que o divino e a percepção deste dependem da localidade e da cultura de um povo, torna-se evidente que a percepção e o significado do solstício dependem do hemisfério aonde a efeméride será observada e comemorada. Ao norte, a comemoração será pelo ápice do verão e chegada do outono; ao sul, a comemoração será pelo ápice do inverno e chegada da primavera.

Em qualquer caso, festejemos o solstício do sol.

sábado, 20 de junho de 2015

Envergonhe-se quem vê malícia

Que o Paganismo Moderno e a Bruxaria e a Wicca são compostos por inúmeros grupos, ideias e vertentes, não é novidade. Que a ausência de autoridade central e liberdade nos dá a todos a competência para discutir, discordar e criticar, mesmo altos sacerdotes e altas sacerdotisas, também não é novidade.
Por sermos tão diversos e divergentes, frequentemente nossas ideias e concepções se chocam. Sacerdotes e sacerdotisas pisam na jaca, autores escrevem besteira, celebridades falam abobrinhas. Apenas pessoas inseguras ou incapacitadas se sentem ofendidas ou consideram sua crença ameaçada pela crítica.
O dileto e eventual leitor sabe das minhas agruras em defender os princípios e valores da Wicca Tradicional diante do esquisoterismo, da neo-wicca comercial, da pop-wicca difundida entre adolescentes.
Quando falamos em Bruxaria e Wicca, falamos de um grupo dentro do Paganismo Moderno. Para fins de elucidação, meu foco é a Tradição, da Bruxaria e da Wicca, o que deixa de fora muitos grupos, vertentes e práticas. Mas se você segue ou tem apreço por estas vertentes e práticas. Não se sinta ofendido, eu não estou discutindo nem negando a autenticidade ou legitimidade de suas práticas, crenças e teologia. Lembre-se que a característica do Paganismo Moderno é a diversidade. Meu foco é simplesmente falar o óbvio, que existem princípios, valores e características intrínsecas a cada vertente. Se isto te ofende ou ameaça sua crença, sinto muito, mas há de considerar que há algo de errado em sua opinião ou interpretação disto que você diz acreditar.
Um dos assuntos que mais suscita discussão no meio pagão é a questão do gênero, da sexualidade, da opção sexual. Quando isto envolve questões como o Hiero Gamos, o Grande Ritual e magia sexual a coisa fica mais complicada. Sobretudo quando falamos de grupos ligados ao dianismo radical [exclusivamente para mulheres nascidas mulheres] ou ligados aos direitos LGBT.
Confunde-se muito gênero sexual e papéis sexuais. Nosso gênero e opção sexual é resultado de diversos fatores, genéticos, fenótipos, ambientais, sociais. Mas nada disso tem a ver com a Wicca. Como religião, esta tem princípios e valores que não precisam nem devem atender, seja  questões politicas, seja questões dos direitos LGBT. A Wicca é uma religião sacerdotal iniciática de mistérios, não há espaço para o Politicamente Correto.
Causa escândalo e protesto por parte de pessoas que se sentem excluídas simplesmente quando afirmamos que adoramos um Deus e uma Deusa, senão diversos Deuses, cada qual com seu gênero e sexualidade, incluindo divindades hermafroditas, transgêneros e transgressoras. Causa escândalo e protesto por parte de pessoas ainda envolvidas com o puritanismo cristão simplesmente quando falamos que o Grande Rito é uma união sexual entre o Alto Sacerdote e a Alta Sacerdotisa. Causa escândalo e protesto por parte de pessoas que se sentem prejudicadas simplesmente quando afirmamos que, embora a Wicca tenha 50 anos, suas raízes, seus mitos e mistérios pertencem à aurora da humanidade.
Outras formas de Paganismo Moderno, de Culto de Bruxas, surgiram ao longo dos anos, utilizando elementos dos rituais wiccanos, são chamados de vertentes wiccanas, tradições e covens utilizam a Wicca como um rótulo. Respire bem fundo por que eu vou falar do óbvio: nem tudo que leva o rótulo de Wicca pode ser chamado assim. Infelizmente agora é um rótulo e seu uso indiscriminado conduz o público achar que a Wicca é “uma filosofia de vida” ou que é um “vale-tudo”.
O irmão pagão homossexual deve se perguntar: mas fulano de tal disse... Eu não tenho problema algum com outras formas de crenças pagãs, outras formas de rituais. Da mesma forma como eu não sinto minha masculinidade ameaçada por existirem homossexuais, eu não sinto minha crença ameaçada por cultos homoeróticos ou pelas religiões da Deusa. Eu apenas quero garantir que a diversidade seja mantida, sem supremacia de nenhuma tradição, sem excluir qualquer opção sexual.
Dizem que a Wicca deve ser inclusiva. Quem exige isso, quando uma sacerdotisa diânica discriminou transgêneros? Não era para sermos inclusivos? Por que tanta exigência para que a Wicca reconheça outras formas de gênero e sexualidade, se existe espaço para todos? Por que tanta insistência em criticar a heteronormatividade ou heterocentricidade da Wicca se existe tantos caminhos pagãos que adotam os mitos e ritos homoeróticos?
Dizem que uma tradição deve evoluir. Tradição não é um organismo vivo. Não podemos confundir costume com tradição. Costumes mudam, não uma tradição. Dizem que uma religião tem que progredir. Religião não é nem tecnologia, nem ciência, mas a busca pelo eterno, pelo divino.
Dentro do círculo, diante dos Guardiões, diante de nossos ancestrais, os ritos devem ser executados da forma apropriada. A única exclusividade na Wicca Tradicional é que o interessado deve passar pelo treinamento e iniciação formais, independentemente de seu gênero e opção sexual. A Wicca Tradicional não segrega nem exclui o homossexual, apenas não há espaço para ritos homoeróticos dentro do círculo. Se vê algum mal, a vergonha é problema seu.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Hecate, a Deusa das Bruxas

A difícil origem de Atena como tendo parentesco com as Górgonas e de Ártemis tendo uma possível origem da Ásia Menor parece um desafio para pagãos que acham que a Grécia Antiga era uma única nação. Um estudo do mundo antigo demonstra que cada cidade era soberana em si mesma e costumavam lutar entre si, como Esparta e Atenas. Não havia uma identidade em comum, muito menos uma religião em comum. Em diversas cidades gregas da antiguidade, os Deuses eram tão gregos quando Jeová é europeu.
Na página da Academia eu pesquisei alguns textos sobre esta Deusa e sua origem. Hecate tem sua origem da península da Anatólia, seu culto começou na região de Caria, na cidade de Lágina. Anatólia é uma península conhecida como sendo o local dos Hititas, dos Frígios, dos Lídios, dos Persas, dos Assírios. Esta península depois fez parte dos domínios da Macedônia e de Roma.
Em português temos termos como hecatombe e hecatonquiro, do grego hekaton, cem. Na página da Academia cita-se hekatos e hekatebolos, significando que fere e arremessa à distância, equiparando Hecate a Apolo. Quando Hesíodo compôs a Teogonia, havia um interesse político na consolidação dos mitos clássicos, havendo praticamente a imposição dos Deuses Olímpicos sobre Deuses mais antigos e os Deuses rurais. Dentre as Deusas que desafiam essa ordem, Hecate é mais complicada.
Segundo os Hinos Órficos, Hecate é filha dos Primordiais Érebo e Nix, Escuridão e Noite, o que a torna descendente direta do Caos. Em outra versão, Hecate é filha dos Titãs Hiperião e Téia, o que a torna descendente de Urano e Gaia. Uma terceira versão diz que Hecate é filha de Perses e Astéria. Perses é filho de Crio e Euríbia, Astéria é filha de Febe e Céos.  Céos, Febe e Crio são filhos de Urano e Gaia; Euríbia é filha de Ponto com Gaia.
Nessa árvore genealógica divina, Hecate é a terceira geração dos Deuses e contemporânea de Zeus. Ela representou um desafio para Hesíodo por que a tradição oral contava que ela ajudou Zeus na Titanomaquia. Em qualquer aspecto, Hecate tem muito mais parentesco com os Titãs e os Primordiais do que com os Olímpicos. Considerando o destino que tiveram os Titãs, Típhon e Píthon, divindades primitivas e primordiais, pode parecer que Hecate não tinha muita escolha. Mas nada nos mitos antigos é simples como a mitologia cristã, não existe esta dicotomia maniqueísta de “Bem” versos “Mal”, nem tudo que é da Luz é bom, nem tudo que é da escuridão é ruim. Na ótica de Hecate, se os Titãs vencessem, haveria uma tirania igual ou pior da de Cronos, havia uma enorme possibilidade do Caos reinar .
Os Titãs sabiam e reconheciam o poder e a descendência de Hecate, o conhecimento e poder que ela possuía eram maiores e mais amplos do que o deles, ela sabia como anular qualquer ataque dos Titãs. Os poderes dos homens também não tiveram chance e garantiram, ainda que de forma subordinada, a importância e culto de Hecate. Seus santuários foram colocados nas encruzilhadas e nas entradas de cavernas e cemitérios. Diante de Hecate, mesmo Hades se ajoelha e devolve Perséfone a Demeter. Considerada a Senhora da Magia, no Mundo dos Mortos, no Mundo dos Humanos e no Mundo dos Deuses, Hecate é a Deusa das Bruxas por excelência.

terça-feira, 16 de junho de 2015

O mistério do Partenon

Os Deuses e as Deusas são uma forma de existência superior. Formas de existência superior se reproduzem sexuadamente. Então como podemos entender o mito da partenogênese?
O edifício mais conhecido e mais popular da Grécia Antiga é o Partenon. Ali existia uma estátua de Atena Partenos.
Nos mitos antigos, Atena “nasce” da testa de Zeus, depois deste engolir Métis, a primeira esposa de Zeus que estava grávida dele. Daí seu título de Atena, a Virgem Concebida, ou Atena Partenos, sendo o Partenon portanto um templo para as “virgens” que concebem.
Uma “virgem” que concebe um bebê que se torna um Deus ou uma Deusa. Parece-lhe familiar? Coincidências não existem. Os mitos cristãos alegam que Maria/Míriam era “virgem” quando concebeu Cristo. Se tomarmos a palavra no original, temos “almah”, ou jovem mulher, não casada, mas não que é virgem no sentido estrito do termo.
Mas nosso foco são os antigos mitos pagãos. Os mitos chegaram até os nossos dias a partir da obra de Hesíodo, que escreveu Teogonia muitos anos depois dos mitos começarem a ser contados em tradições orais.
Hesíodo conta que no início havia o Caos. Caos gera Nix e Erebus, Gaia e Urano. Desses casais primordiais vieram os outros Deuses e Deusas. Caos, ao contrário de sua progênie, é como a Mônada, não é masculino, nem é feminino, apenas existia e dentro disto habitavam as potências divinas originais que emergiram do Caos quando adquiriram consciência de suas existências.
Métis, esposa de Zeus e mãe de Atena, foi gerada por Oceano e Tétis. Ambos são progênie de Urano e Gaia, o que certamente vai deixar muito pagão, bruxo e wiccano confuso por lidar com esse lado incestuosos dos mitos antigos, mas isto é outro assunto.
Diversos mitos antigos falam de Deusas “virgens” e de sua enigmática progênie. No Paganismo Moderno diversos autores e sacerdotes diânicos falam que o mito da partenogênese é, literalmente, a concepção sem a participação de um Deus. Mas será isso mesmo?
Nas antigas sociedades, o trabalho de parto era feito exclusivamente por mulheres. Em muitas sociedades este hábito continua preservado na figura das parteiras. O parto era realizado sem a presença do homem, mas isso não significa que o homem não tinha tido participação na concepção. Ainda nos dias de hoje, mulheres cuidam de seus filhos e filhas sem precisar de um homem. Este é o sentido antigo da “virgem” dos tempos antigos: uma jovem mulher, independente e autônoma. Podemos e devemos entender assim os mitos das Deusas “virgens” que concebem. Mas como isso era possível, como ocorria?
Nos mitos arturianos, Morgana assume seu posto como sacerdotisa e representante da Deusa, dentro de um templo e se deita enquanto espera. Enquanto isto, diversos homens tentam encontrar a sacerdotisa da Deusa, desafiando os perigos de um labirinto e tendo de combater uns com os outros. Apenas um, mais forte ou mais esperto, consegue chegar até a câmara real, deita-se com a sacerdotisa e depois é coroado rei porque deitou-se com a Deusa. Morgana não viu quem a fecundou e seu filho Mordred acabou matando Artur, que era seu pai. Em tempos antigos, os reis eram aclamados depois que o possível herdeiro vencesse o labirinto e tivesse relações sexuais com a Deusa. Esse costume sobreviveu nas celebrações do 1º de maio e no Grande Ritual de nossos ritos.
Um Deus, para se tornar o Rei Deus, também tinha que ter como esposa uma Deusa. Muitos mitos antigos mostram como um Deus se mantinha no poder, celebrando suas núpcias com sua mãe, sua irmã e até mesmo sua filha. Mitos que certamente escandalizam pagãos, bruxos e wiccanos ainda repletos do puritanismo e provincialismo cristão. Os mitos antigos mostram que muitas vezes o Deus descartar sua consorte, grávida, quando não caçava ela e sua progênie, exatamente para evitar perder seu trono. A Deusa, rejeitada e desonrada, fugia ou se exilava. Em terras distantes, na companhia de outras Deusas, passava por um rito de purificação onde ela “recuperava sua virgindade”. Invariavelmente, esta Deusa, ou uma Deusa mais antiga, acabava ensinando ou dando poder ao novo Deus ou Deusa, que nascia predestinado a desafiar e tomar o lugar do Deus Rei.
Então Zeus foi muito esperto. Para evitar o mesmo destino que seu pai Cronos, devorou Métis, grávida de Atena. Atena “nasceu” por partenogênese? Vimos que não. Atena nasceu “virgem” no sentido de que é uma jovem Deusa, autônoma e independente. Atena não “nasceu”, mas emergiu de Zeus quando despertou sua consciência.

sábado, 13 de junho de 2015

O mito e mistério dos guerreiros dançarinos

Korybantes eram dançarinos guerreiros que adoravam a Deusa Cibele com danças e tambores. Kuretes ou Kouretes eram nove dançarinos que adoravam a Deusa Réia.
Os coribantes podem ser comparados aos Dactyls, raça mítica associada à Grande Mãe. Eles eram espíritos masculinos, como os Cabiri, um grupo de divindades ctônicas.
No mito sobre o nascimento de Zeus, quando Gaia/Réia/Cibele veio a Creta e escondeu o infante Zeus em uma caverna, os coribantes cretenses ritualisticamente batiam suas lanças e escudos para que Cronos não o achasse.
Os salii podem ser comparados aos coribantes. Os salii eram sacerdotes ou guerreiros dançarinos do Deus Marte, pelos paramentos, pela relação de fraternidade e pelo rito de passagem, uma vez que os ritos eram executados por jovens rapazes que entravam na idade adulta.
Os coribantes eram chamados couretes por sua relação ao Grane Kouros, que era Zeus, depois foi identificado como Zagreus, ou Dioniso. A associação dos couretes com Dioniso segue um típico padrão de uma religião de mistério iniciática, representando o drama do nascimento, crescimento, morte e ressurreição. Nós podemos entender o drama entre Cronos e Zeus nesse sentido.
Nos mitos, Zeus nasceu em uma caverna na região de Dikte ou Ida, em Creta. Chamado de Grande Kouros, seu nome é invocado com júbilos, danças e músicas. Este ato, consumado pelo Deus em pessoa, garante a fertilidade dos campos e do gado. Aqui Zeus é identificado como um jovem que entra na idade adulta, não como filho de um Deus ou de uma Deusa, mas como um líder entre semelhantes, carregando o thiasos como as menades de Dioniso.
Os couretes aparecem no mito de nascimento de Zeus em conjunto com os mistérios de Demeter e Dioniso. Estrabão descreve os couretes como guerreiros dançarinos que ajudam Réia a esconder Zeus de Cronos. Como na história, o mito deve ser entendido como uma continuação de outro mito.
Para entender o mito do nascimento de Zeus, temos que entender o mito de Cronos. Assim como Zeus, Cronos estava predestinado a se rebelar contra seu pai, Urano, em benefício de Gaia e de seus irmãos. Cronos engolia seus filhos não por ser um pai desnaturado, mas porque temia e sabia que um de seus filhos haveria de destroná-lo. Cronos não é um arquétipo da pulsão humana pela destruição.
A imersão de Zeus como infante e Zeus como jovem que entra na idade adulta ressalta que este é um rito de passagem. Em todas as culturas humanas, o jovem passa por um rito de passagem, que encena sua morte e ressurreição, um rito iniciático, onde a criança morre, dando lugar ao adulto. O mito do nascimento de Zeus é igualmente um rito de passagem, um rito iniciático, quando a morte, ou o tempo, é vencido, para dar vez a uma nova vida, um novo tempo.
No mito de nascimento de Zeus, os couretes parecem servir ou adorar uma Deusa, mas seu objetivo é esconder, ocultar, proteger Zeus. Os couretes estavam, na verdade, protegendo o mistério que repousava dentro da caverna. Os couretes agem como guardiões do caminho iniciático, essa jornada que fazemos dentro do labirinto que existe em nós mesmos. Os couretes levam Zeus dos braços de Réia, para emancipar Zeus de Réia, para introduzir Zeus na fraternidade masculina, para ensinar Zeus suas obrigações como homem. Então os couretes estavam a serviço de Zeus, não de Réia.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Nada de novo sob o sol

Na coluna do Paganismo do Patheos, na página do Agora, Conor Warren escreveu um texto com uma pergunta aparentemente simples: de quem é o sol?
O sol está associado a diversos Deuses e Deusas, foi adorado de diversas formas, por diversos povos. Isto deve dar um nó em muitos pagãos, então eu espero que meus irmãos e irmãs saibam ler história para perceberem que era normal e natural para nossos ancestrais tomarem um Deus ou Deusa de outro povo e identificar com um Deus ou Deusa de seu panteão, pelas semelhanças de atributos, poderes ou simbologia. Viam semelhanças, mas não os tratavam como sendo a mesma pessoa divina. Todos nós temos pais e nossos pais têm seus talentos, suas virtudes, seus atributos. No entanto, cada um tem o seu pai e sua mãe.
Os Deuses estabeleciam um vínculo com os povos que os adoravam similar ao relacionamento familiar, muito embora estes Deuses não tenham ou pertençam a uma etnia específica. Os Deuses têm muito mais uma conexão com o local de seu domínio do que com o povo que ali habita. Então é algo bastante evidente que cada pessoa divina escolha elementos da natureza para se manifestar e se revelar ao seu povo, por isso que o sol é um fenômeno natural com tantas pessoas divinas se identificando com ele.
Se há um ente divino que seja o sol propriamente dito, ele ou ela não parece se importar que outros Deuses ou Deusas usem esta lâmpada para se apresentar aos homens. Tal como o sol, o astro rei, este Rei ou Rainha deve ficar orgulhoso quando uma pessoa divina utiliza o sol como sua flâmula.
Os diversos Deuses e Deusas associados ao sol tinham um vínculo com uma determinada região e estabeleceram um vínculo com um determinado povo, com mitos, mistérios, ritos e sacerdócio específicos.
Deuses e Deusas não são ciumentos, não se importam que seu povo adorem outros Deuses e Deusas, mas certamente os Deuses e Deusas tem ciúmes se veem seu povo chamarem outro Deus ou Deusa para seus ritos e se sentem ofendidos se são chamados para ritos que não lhes pertence.
Muita coisa foi perdida e esquecida com a imposição do Cristianismo, o multiculturalismo era uma realidade desde o tempo de Alexandre o Grande e muitos Deuses e Deusas perderam esse vínculo com um determinado local e povo para se tornarem religiões populares. Meio como reflexo dessa perda de identidade e meio como resultado da massificação de certas ideias por celebridades pagãs, o Paganismo Moderno acabou assimilando esse conceito da Teosofia de que todos os Deuses são o Deus e que todas as Deusas são a Deusa. Estes conceitos são fartamente utilizados pelas Religiões da Deusa, pelo Dianismo e pela Pop-Wicca para conquistar a popularidade entre um público cada vez mais ansioso por espiritualidades, crenças e religiões alternativas. E isto apenas nos torna motivo de chacota, não de respeito.
Eu espero que o curioso, o simpatizante e o pagão moderno saibam primeiro respeitar seus antepassados e ancestrais, para então respeitar os mitos, os mistérios, os ritos, os sacerdócios e os Deuses.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A Fonte

Lendo o Patheos eu cheguei a uma série de textos ateus falando da Wicca e ali tratam de um assunto pouco comentado entre pagãos, bruxos e wiccanos: a Fonte.
Em algumas versões da Carga da Deusa temos o seguinte trecho:
“Quando se reunir em meu nome eu te darei conhecimento do espírito eterno”.
O mistério wiccano não é baseado em um livro, nós não somos uma “religião de revelação”, onde um texto sagrado é toda verdade, mas sim que deve ser interpretado.
Vamos analisar o texto. A poesia fala de um espírito eterno em terceira pessoa. Então de quem a Deusa está falando? Certamente a Deusa não fala de si mesma, visto que endereça a outro princípio divino. Eu poderia inferir que Ela fala do Deus, mas a forma quase impessoal de tratamento destoaria da forma como a Deusa trataria seu Consorte. Alguns autores e sacerdotes wiccanos falam de um Uno, uma Fonte, ou mais especificamente, do Dryghtyn.
O site Sacred Texts cita uma poesia de Vivianne Crowley:
“Em nome de Dryghtyn, a Antiga Providência, que era do inicio e é pela eternidade, Masculino e Feminino, a Fonte Original de todas as coisas”.
Uma análise textual denota que falamos da união do Deus com a Deusa, que é a função do Hiero Gamos, sem o qual o Universo não existiria. Esta Fonte não é nem Ele nem Ela, mas um Aquilo, indistinto, impessoal.
Os conceitos mais próximos dessa fonte seriam:
1)      O mítico Andrógino, que é a natureza original da Humanidade.
2)      A Mônada, dos Gnósticos e Neoplatônicos.
3)      O mundo das ideias, do Platonismo.
Algumas vertentes do Paganismo Moderno são monistas, outras são monoteístas, outras são henoteístas e as demais são politeístas. O Dianismo e as religiões da Deusa costumam confundir seu monoteísmo da Deusa com o monismo, mas a Mônada é impessoal, indistinta, não pode ser identificado com o Deus ou a Deusa, não é Ele nem Ela, mas um Aquilo.
Sobre o mito andrógino, eu escrevi sobre isso no texto “Interpretando os mitos andróginos”. Sobre o mundo das ideias, eu tenho um texto sobre isso em “A origem do Logos”. Sobre o Neoplatonismo, eu tenho um texto sobre isso em “Sobre os Deuses”. Sobre a Mônada, eu tenho um texto sobre isso em “Henosis a união com o divino”.
A Mônada, para o Paganismo Moderno, assume a função do Terceiro Divino, mas não podemos confundir este conceito com a Tríade da Deusa. Ressaltando as diferenças, o monoteísmo abraãmico tem esse Terceiro Divino, chamado de Espírito Santo, a Shekinah, o Profeta. Não obstante, estas personalidades divinas são manifestações do Deus de Abraão. A Mônada ou a Fonte é uma manifestação divina por si, quando a Dualidade Divina [o Deus e a Deusa] se unem e se confundem no arrebatamento do Hiero Gamos. Disto percebemos o mistério do Grande Ritual.
Tratando do assunto, a série de artigos dos ateus analisando a Wicca, ressalvando a simplificação e generalização, os artigos fazem um bom trabalho. Exceto quando citam trechos de textos de autores wiccanos. Não podemos esquecer que a Wicca não é uma “religião de livro” e que livros, por mais que sejam escritos por altos sacerdotes ou altas sacerdotisas, expressam a opinião de cada um. Uma das citações e análises define a Fonte como a derradeira divindade. Esta declaração soa estranha, afinal nós acreditamos no ciclo da existência, então não há uma derradeira divindade. Se considerarmos a Fonte como a união do Deus com a Deusa e do Hiero Gamos se manifesta o Universo, então podemos entender que tudo é divino [inclusive a ciência e o ateísmo], mas não que o Todo é a derradeira divindade.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O umbigo do mundo

Então levantou-se Jacó pela manhã de madrugada, e tomou a pedra que tinha posto por seu travesseiro, e a pôs por coluna, e derramou azeite em cima dela.

E chamou o nome daquele lugar Betel; o nome porém daquela cidade antes era Luz. [Gênesis 28:18,19]

Eu escrevi sobre a curiosa semelhança entre caverna, gruta, pedra e túmulo no mito de Mithra. Eu também escrevi como templos são simulacros dos santuários antigos da Deusa.

A consagração de uma pedra ou pilha de pedras ao divino está presente nas religiões monoteístas abraãmicas. Betel está para o Judaísmo como Petra [Pedro] está para o Cristianismo. No Islamismo, o centro mais sagrado, a Meca, é um santuário feito em torno da Caaba.

Isto também está presente nas religiões antigas.

A palavra grega baetyl, ou baetylos, provavelmente originou-se do "betel" púnico ou o semita "betel", ambos significando a casa de Deus. Havia muitas dessas pedras em todo o mundo antigo, e parece que eles representavam o espírito ou essência de uma divindade.

Na mitologia fenícia, um dos filhos de Urano foi nomeado Baetylus. A adoração de baetyli foi generalizada nas colônias fenícias. [Finslab]

Na religião e mito gregos antigos, o termo foi aplicado especialmente para a Omphalos [Ônfalo], a pedra que teria sido engolido por Cronos no lugar de seu filho recém-nascido Zeus. Esta pedra foi cuidadosamente preservada em Delphi.

Em Roma, havia a efígie de pedra de Rhea ou Cybele, a Mater Deum, que havia sido trazida da Ásia Menor, em 204 A.C.

Ônfalo deriva da palavra grega omphalós ou omphalos e seu significado literal é “umbigo”. O ônfalo pode também ser definido como um dos numerosos símbolos do “centro” cósmico, onde se produz a comunicação entre o mundo dos homens, dos mortos e dos Deuses.

O ônfalo trata-se, portanto, de um lugar onde é possível transcender o ordinário e acessar a origem maravilhosa e divina de todas as coisas. Os que alcançam estes lugares, estando purificados e imbuídos dos rituais corretos, são transportados à origem da criação, são capazes de presenciar a ação dos deuses, falar com os mortos, assistir ao nascimento do universo e de todas as coisas vivas. Para os antigos, o verdadeiro é o adjetivo próprio do que é sagrado, pois, ao fim, só o que é sagrado existe, tudo o mais é ilusão, é profano, não criador e, portanto, vai decair e desaparecer. Apenas o que é verdadeiro é eterno. Essa é, obviamente, a base de grande parte das crenças religiosas. [Revista Fantástica]

sábado, 6 de junho de 2015

Esse tal de respeito

No Canal Ateu do Patheos, Peter Mosley escreveu um artigo falando sobre como os cristãos usam o “respeito” como argumento contra o ateísmo.
Sabemos quais são os motivos dos ateus em suas críticas ao Cristianismo e às religiões em geral. Sabemos que debates quanto à crença [ou descrença] costumam ser subjetivos. Mesmo argumentos ateus são preconceituosos, intolerantes, superficiais e generalizantes.
Podemos começar com a premissa de Peter, quando ele se coloca no lugar do cristão e propõe a questão de como proteger uma crença irracional e prejudicial.
Caso típico de inferência: se parte do exemplo para se generalizar. Pressupõe-se que toda crença é irracional e prejudicial. Não percamos o assunto aqui, sabemos que existem organizações religiosas que defendem absurdos, alegando que suas afirmações são verdades absolutas, por que são divinamente reveladas. Não obstante, não podemos confundir alegações de uma organização religiosa como sendo a opinião de todas as religiões. Organizações religiosas tendem a interpretar a escrituras sagradas de seu credo mais por interesses políticos do que por interesses religiosos.
O erro começa na premissa de que toda religião, toda crença, toda espiritualidade é irracional.
Mas o argumento tem seu mérito. Chega a ser esquisito ver cristãos reclamar que o Cristianismo é a religião mais perseguida no mundo. Chega a ser esquisito ver cristão pedir para ter sua liberdade religiosa respeitada. Torna-se absurdo ver cristão exigir pela liberdade de expressão.
Eu não concordo com a postura do ateu que alega que uma vez que o “religioso” é desrespeitoso então o ateu pode ser desrespeitoso com suas crenças. Podemos ser desrespeitoso em relação a um argumento. Discordar de um argumento ou de uma afirmação religiosa não é ser desrespeitoso o ofender uma crença. Discorda-se de um argumento, opinião ou visão religiosa, não da crença em si mesma.
Sabemos, por exemplo, do texto de Celso, por fragmentos de seu discurso contido no texto de Orígenes. Celso criticou duramente o Cristianismo, assim como Juliano, chamado Apóstata, por uma organização religiosa que conquistou o poder absoluto e ali se manteve por muitos séculos, por meio da força e do medo.
Dependendo da circunstancia e do motivo, o respeito é um valor utilizado para desqualificar uma crítica, quando não o de calar, censurar, o questionamento.
Eu posso listar várias ocasiões onde a crítica ou a apologia perderiam seu argumento simplesmente se usando o argumento de que se deve respeitar. Como o ex-bruxo Millenium que se tornou cristão na IURD. Pagãs, bruxos e wiccanos criticaram e ele exigiu que respeitassem sua liberdade religiosa e sua escolha. Como a sacerdotisa diânica Z Budapest que causou uma comoção no Pantheacon ao discriminar transgêneros. Pagãos, bruxos, wiccanos e diânicos criticaram e caberia aqui ela pedir para respeitassem sua tradição e sua opinião. Como eu diversas vezes critiquei o discurso do monoteísmo dissimulado do Dianismo de personalidades pagãs, divulgando ideias e práticas pessoais, divulgando outras formas de paganismo moderno como se fosse Wicca. O caro eventual e dileto leitor sabe bem que esse pagão passou verdadeiras agruras.
Mesmo entre pagãos politeístas, minha crítica a Eric Dupree causou comoção no Patheos.
O problema, que muitos pagãos parecem esquecer, é que o monoteísmo é exclusivista. Por uma questão de lógica e discurso, o monoteísmo é, por definição, ofensivo a qualquer outra percepção do divino.
Considerando a história do monoteísmo abraãmico, eu prevejo um grande perigo à humanidade, se o monoteísmo diânico continuar a crescer, ganhar popularidade, influência e poder. Não irá demorar muito a começar os concílios, as listas de heresias, os livros proibidos, as censuras, as prisões, torturas, mortes, desta vez feitas “em nome da Deusa”.
Não obstante, pagãos exigem que eu tenha respeito em relação ao Dianismo, que eu não posso dizer que a Deusa Diânica é uma Santa Ameba. Se alguém tiver uma palavra melhor para designar uma divindade que reproduz a si mesma assexuadamente, podem me dizer. Eu discordo dessa percepção do divino e eu critico os argumentos teológicos, isso é discordar, isso não é ofender, isso não é desrespeito. Isso é ser honesto e sincero. Isso é servir aos Deuses e honrar a nossos ancestrais.
PS: O interessante é que as mesmas pessoas que "exigem" respeito criticam a Wicca Cristã, a Eddie Van Feu e não reclamaram quando uma conhecida celebridade pagã demonstrou preconceito em relação a pessoas trangênero.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Os profetas intocáveis

Houve um tempo em que o povo de Israel não era muito diferente dos atuais cristãos, onde crenças populares, crenças antigas, sobreviviam de forma sincrética ou folclorizada. Houve um tempo em que o povo de Israel identificava o Deus daquele povo com o Deus Cananeu, Baal, afinal este era a palavra para Senhor. Houve um tempo que Yahveh era um de muitos Deuses e tinha uma Deusa consorte conhecida como Aserá. Até que rabinos fizeram uma reforma religiosa e proibiram o culto a Asherá. Como podemos notar no texto sagrado:
Agora, pois, manda reunir-se a mim todo o Israel no monte Carmelo; como também os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal, e os quatrocentos profetas de Aserá, que comem da mesa de Jezabel.
Então Acabe convocou todos os filhos de Israel; e reuniu os profetas no monte Carmelo.
Então Elias se chegou a todo o povo, e disse: Até quando coxeareis entre dois pensamentos? Se o Senhor é Deus, segui-o, e se Baal, segui-o. Porém o povo nada lhe respondeu.
Então disse Elias ao povo: Só eu fiquei por profeta do Senhor, e os profetas de Baal são quatrocentos e cinquenta homens. [1 Reis 18:19-22]
Então caiu fogo do Senhor, e consumiu o holocausto, e a lenha, e as pedras, e o pó, e ainda lambeu a água que estava no rego.
O que vendo todo o povo, caíram sobre os seus rostos, e disseram: Só o Senhor é Deus! Só o Senhor é Deus!
E Elias lhes disse: Lançai mão dos profetas de Baal, que nenhum deles escape. E lançaram mão deles; e Elias os fez descer ao ribeiro de Quisom, e ali os matou. [1 Reis 18:38-40]
Eu aposto uma torta de maçã que leitores cristãos devem estar felizes com essa citação, mas acalmem-se, o tio Bode continua sendo pagão. Eu escolhi esta citação para ressaltar que os profetas de Aserá não foram tocados. Eu não encontrei qualquer explicação em páginas cristãs. Então a pergunta é por que isso aconteceu?
Primeiro temos que saber que é Aserá, Asherá ou Asherah:
Aserá é uma Deusa Cananéia muito antiga, uma inscrição suméria datando de 1750 A.C. se refere a ela como a esposa de Anu, que pode ser identificado como El, o deus pai do panteão cananeu, cujo papel é muito similar ao deus sumério An.
Aserá era chamada "A Senhora do Mar", o que a relaciona com a Nammu suméria e com a Ísis egípcia, "nascida da umidade".
É possível que Aserá se convertesse na esposa de Yahveh aos olhos dos hebreus quando o deus assimilou a iconografia de deus pai que havia pertencido a El.
Em cada escavação arqueológica importante na Palestina são encontradas figuras femininas, datadas entre 2.000 A.C. até 600 A.C.
É possível que as mulheres usassem estas diminutas imagens para pedir a Aserá sua ajuda no parto ou para que lhes concedesse fertilidade.
Aserá foi a Deusa de Tiro e da Sidônia em épocas longínquas, ao menos desde 1200 A.C., e foi provavelmente uma esposa Sidônia de Salomão quem a introduziu na corte do rei hebreu.
Mais tarde, o rei Acab de Israel (873-852 A.C.) se casou com Jezabel, filha de um rei da Sidônia, e o culto a Aserá foi estabelecido de novo na corte, junto com seu filho Baal. [Deusa Interior]
O fato é que os povos de onde surgiu o monoteísmo abraãmico eram politeístas. Isso deve incomodar muito cristãos, judeus e muçulmanos. Mas mesmo nos textos sagrados destas religiões é possível ver a presença de ao menos uma Deusa que, embora oculta ou suprimida, foi cultuada. Basta saber ler nas entrelinhas dos textos originais.
Mesmo proibido, reprimido, o culto para a Deusa Asherah resistia, como o profeta Jeremias notou:
Quanto à palavra que nos anunciaste em nome do Senhor, não te obedeceremos a ti; antes, certamente, toda a palavra que saiu da nossa boca, isto é, queimaremos incenso à Rainha dos Céus e lhe ofereceremos libações, como nós, nossos pais, nossos reis e nossos príncipes têm feito, nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém; tínhamos fartura de pão, prosperávamos e não víamos mal algum. Mas, desde que cessamos de queimar incenso à Rainha dos Céus e de lhe oferecer libações, tivemos falta de tudo e fomos consumidos pela espada e pela fome. Quando queimávamos incenso à Rainha dos Céus e lhe oferecíamos libações, acaso, lhe fizemos bolos que a retratavam e lhe oferecemos libações, sem nossos maridos? [Jeremias, 44,16-19].
No mundo contemporâneo, em plena Israel, alguns Judeus tentam resgatar essa herança, relembrando suas raízes, origens e crenças. Este é um projeto que visa erradicar o domínio da Sinagoga e do Sinédrio sobre a crença popular. Eu acredito que o resgate das crenças politeístas deva diminuir as constantes guerras e conflitos no Oriente Médio.
No Ocidente esse movimento ainda é restrito, o Paganismo Moderno ainda é um fenômeno recente, sem esquecer que ainda existe uma enorme influência da Igreja e do Cristianismo em nossa cultura. Eu acredito que reencontraremos os Caminhos Antigos. Eu acredito que o Ocidente vai também resgatar suas raízes, suas origens e crenças. Eu acredito que o poder das organizações religiosas irá se extinguir. Eu acredito que quando redescobrirmos nossos ancestrais e os laços de sangue e de família que temos com os Deuses Antigos, o Ocidente deixará de promover a guerra, a exploração, a segregação, a misoginia, o machismo, o sexismo, o preconceito, a intolerância. Eu acredito que poderemos ter uma sociedade inclusiva e com justiça social, onde haverá espaço para a diversidade e a igualdade.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Hierogamias entre as Vênus e os animais

Um dos motivos mais recorrentes nas representações parietais é a hierogamia ou coito das vênus com seus consortes animais, a redução do todo (deusa ou consorte) à parte essêncial (vulva, falo/chifre) é uma constante. Inúmeras imagens, de regiões as mais diversas, representam o par, guardando pequenas diferenças entre si. Dentre elas encontram-se as Vênus de Angles acompanhadas por bisões e cabritos, as três vênus estão esculpidas no abrigo de Bourdois e datam do período Magdaleniano superior; limitam-se à parte medial do corpo, têm os ventres bojudos; os sexos são bem trabalhados: o triângulo pubo-genital fortemente incisivo, a vulva apresenta alguma diversidade de uma figura a outra, como também a fenda vulvar; a incisão simples, mas longa, na primeira; é mais curta e mais profunda na segunda e na terceira. Essa terceira vênus sobrepõe-se a um bisão muito sumário e é, por sua vez, subposta a outro bisão, que a encobre a partir das coxas.

Essas três vênus reduzem-se, na essência, ao ventre e ao sexo, da mesma forma que a quarta, encontrada numa rocha calcária do mesmo complexo arqueológico; essa figura, associada a dois cabritos, é subposta ao mais jovem deles, que lhe toma a parte superior do corpo. Tanto nos bisões, quanto no mais jovem dos cabritos é nítida a região do dorso e do sacro (órgãos reprodutores), com a presença do falo em ereção, apontado para o sexo da vênus; a cabeça alongada do mais velho dos caprinos com os chifres, confirma os elementos de força – aqui visto como arma de defesa e ataque e, portanto, de dupla virilidade. O elemento central parece ser a força, aquilo que, muitos milênios depois seria denominado pelos latinos como uis e uir, de onde derivam violência e varão.

A Mulher sob a Rena é uma das peças mais célebres do período Perigordiano, encontrada em Laugerie-Basse, gravada em uma plaqueta, fragmento de osso de rena, de formato regular, medindo 101mm de comprimento por 65mm de largura. Nessa, vê-se uma mulher, deitada sobre as costas, enquadrada pelas patas posteriores e o ventre de um animal macho; como as demais representações femininas, a parte principal é o ventre, muito volumoso; o corpo é representado de perfil; o triângulo púbico e a vulva, nitidamente incisiva, são representados em 3/4. Como nas imagens anteriores a união do macho animal com uma fêmea de formas humanas se confirma, e, neste caso, indica uma associação já estabelecida antes do Magdaleniano.

No pendente do feiticeiro de Chauvet-Pont-d’Arc, datado do Auraciano, observa-se a confirmação da equivalência falo/chifre, pois o que está sobreposto ao delta púbico da deusa é a cabeça do homem-bisão, com seus chifres. As imagens restringem-se ao essencial de sua figurativização, ou protofigurativização, o delta pubo-genital para a vênus e a cabeça do bisão com membros humanos. O pendente calcário onde as imagens se encontram localiza-se no coração da Sala do Fundo, é “um verdadeiro cone de rocha, que desce do teto para terminar em ponta à 1,10m do solo”. A parte ornada é a base. O cone sobre o qual foi representada a cena é sobremodalisado por dois valores opostos e complementares: à semelhança do delta/triangulo invertido, ele conota o sexo da deusa-mãe-natureza, a porta pela qual os animais deverão sair após a gestação; por outro lado, levando-se em conta a topografia da gruta, ele representa o falo dentro do sexo-gruta. E cria uma mise en abyme, espelhada ou complementar.

Pode-se observar no mesmo sítio, próximo do pendente, dois felinos, um mamute e um pequeno boi almiscarado, que compõem as representações vizinhas. Mas é a sua localização privilegiada na Sala do Fundo, diante do grande friso animal, que referenda a leitura.

A representação de quatro outras vênus na rede que compreende a galeria dos Megaloceros (grande veado) e a sala do fundo, indicando cada uma a entrada dos divertículos adjacentes, marca a ligação do feminino, do triângulo púbico, com as entradas (vulvas) das cavernas e sua conotação de útero da terra. Esta associação não é frequente apenas na gruta de Chauvet-Pont-d'Arc, em outras também elas estão em posições estratégicas, em geral acompanhadas pelos cornudos, indicando a estreita relação das grutas com o feminino ou a Deusa Mãe e um ciclo de renovação da natureza que se faz com o auxílio de um macho potente, como no pendente. Note-se, de passagem, que o motivo do monstro/animal que copula com uma deusa/jovem reaparece em épocas posteriores. Como na imagem do pendente, a Fera coloca sua cabeça no colo de Bela, metáfora “delicada” para a cópula.

Tanto no caso das quatro vênus de Angles, como no da mulher sob a rena de Laugerie-Basse, no pendente do feiticeiro de Chauvet-Pont-d’Arc, ou ainda dos cinco blocos da estação de La Ferrassie, datados dos períodos Auraciano II e III, onde um conjunto de vulvas é gravado em associação com animais machos pintados em vermelho ou negro, documenta-se a associação da figura feminina com um macho cornudo, indicando, por meio da sobreposição do macho ao ventre da fêmea, uma união entre ambos. Essa hierogamia destinada a promover a fertilização da Deusa Mãe e de seus domínios – homem e natureza – exige um consorte à altura dos poderes da Deusa, e esse consorte é, por definição, marcado pela força física, ferocidade/agressividade, por uma virilidade acentuada e pela presença de longos chifres, com nítida preferência dada aos touros/auroques e bisões.

Representados nas paredes das cavernas, em tons de vermelho e negro, os touros, bisões, auroques, renas e mamutes são imagens vigorosas de um realismo requintado que se opõe ao traço esquemático usado para representar o macho da espécie humana – muito frágil, quando comparado a esses animais. Um olhar mais atento sobre as representações parietais desses animais revela um conjunto de traços comuns – um conjunto sêmico que marca o reconhecimento do consorte da deusa, seja ele um touro ou um “minotauro”, pois se inscreve num contorno mínimo, numa protofiguratividade, que faz ver a energia fertilizadora e mortal. 

Da gruta de Pech-Merle, Cabrerets (Lot), vem uma das representações mais interessantes, datada do Aurinaco-perigordiano, segundo Breuil, ou tavez do Solutreano, aproximadamente 15 a 20.000 a.C., três figuras femininas estão representadas no teto da Sala dos Hieróglifos. De uma superfície total de 40 m2, emcontram-se quatro grupos traçados a dedo ou a varinha sobre argila, o grupo A compreende um emaranhado de “macarrões”, quatro mamutes e três figuras femininas de perfil, a mais completa delas está sobreposta a um enorme falo.

Como as demais representações do período, a figura feminina possui seios pendentes, ventre e nádegas volumosos; os membros inferiores são bem proporcionados, com discreta indicação dos joelhos e um giro do traço posterior que pode representar o pé. Das três imagens femininas, ela é a única a possuir cabeça dotada de um bico que pode representar os cabelos. Subposto a ela, à altura das ancas, como se ela o montasse, um enorme falo. A conotação erótica da imagem reforça o visto até o momento, bem como a ligação do coito/hierogamia com a propiciação da Natureza e de abundância de caça, pois há imagens de mamutes junto das femininas. A desproporção do falo em relação à figura feminina, pouco comum, indica o poder fecundante deste e sua aproximação com os animais de grande porte, ao passo que a idéia de ser ele montaria para a Senhora, corrobora a idéia da supremacia feminina. 

Outras imagens, de diversas localidades, confirmam a idéia de uma magia sexual ligada à caça e à Natureza, na qual a cópula ou a mescla dos elementos feminios/masculinos aos animais visavam o estímulo da Deusa Mãe-Terra e a produção abundante de alimentos, bem como a proteção desta. Dentro deste conjunto de imagens que estabelecem equivalências entre a cópula/hierogamia e animais um exemplo interessante é o da Cueva de los Casares, Guadalajara, Espanha.

O casal do primeiro grupo está a 15 cm sobre a perpendicular do olho do mamute lateral que compõe a cena seguinte, levando-se em conta o ajuste do foco de luz e a morfologia da parede.

Chama atenção na análise a correlação estabelecida entre a direção para a qual aponta a presa do mamute - o ventre da figura antropomórfica esteatopígea (de ancas largas), portanto, feminina, que copula com a figura masculina e que traz feições não humanas, mas zoomorfas. Do mesmo modo, a outra presa quase chega a tocar a égua e outra imagem antropomórfica de ventre saliente, na qual está gravada uma vulva e o nascimento de um pequeno ser de forma humana.

Algumas das conclusões a que o pesquisador chega também trazem contribuições à análise em curso, sobretudo no que toca às correlações entre as figuras, as dimensões do falo e da vulva representados nas imagens e o estabelecimento de um contínuo, de um todo para as cenas, conotando um sentido semi-simbólico, portanto, mítico.

A idéia de conjunto estabelecida entre as três cenas configura uma narrativa elementar, ou seja, a noção de interferência de uma ação na outra (ocorrida no tempo), a cópula se liga à máscara do mamute (o personagem itifálico tem o rosto voltado para a máscara), e ambas à cena da vulva sobre a égua; reforçando esse fio condutor as dimensões análogas entre o falo e a vulva e sua localização à mesma altura, porém em pólos opostos da representação, indicam uma oposição complementar. Pode aventar-se a seguinte estrutura narrativa elementar: a máscara-mamute (sacerdote?) é o sujeito que estabelece o elo entre a cópula do casal antropomórfico e a vulva sobre a égua, conotando que a ação da cópula tem correlação temporal (de anterioridade) com a vulva/chaga (posterioridade). Isto decorre de a presa do mamute apontar para a zona vulvar da ‘fêmea’, enquanto que o “homem” é representado como um símile do macho animal (desproporção do falo + máscara animal). Ao mesmo tempo, o falo e a vulva, em função da localização e das dimensões apresentadas, fecham um círculo, no qual a cópula com a fêmea esteatopígea equivale a uma cópula com a vulva (símbolo da Deusa Mãe/Terra) e esta é mediada pelo mamute, ou seja, a produção de alimento/caça para o grupo. Magia simpática, como diria Frazer, na qual os elementos da composição estabelecem uma relação por contiguidade e complementariedade. Ou ainda, de que a vulva é a ferida/caça do animal, que proporciona a manutenção do grupo, com nascimento do pequeno antropomorfo, novamente um ciclo de cópula, caça e nascimento mediado pela máscara-mamute, vida e morte estão em relação direta e complementar.

Na escultura da vênus de Tursac, pode-se observar o mesmo tema e motivo retomados, a ambiguidade criada pelo escultor faz ver ora uma vênus estilizada, ora um falo, ora uma cópula. A vênus vista em 3/4 e de costas assemelha-se não só ao falo, mas também a uma ponta de chifre ou de lança, reforçando a intencionalidade do jogo já visto entre masculino, feminino e cópula.

Em outro exemplo do norte africano, da gruta de Guelmuz el Abiod, observa-se, igualmente, um casal “mítico” assentado com as costas se tocando, ambos estão dentro de uma redoma ou grinalda, esta é composta por uma fita ou forma cilindróide (semelhante a uma serpente) que nasce das costas do personagem macho, do cóccix, (ou do meio de ambos), à guisa de cauda, envolve o casal e tem a outra extremidade, angulosa, postada diante de uma figura masculina bastante estilizada e vista de frente; ao lado desta guirlanda um animal cornudo macho, adulto, e um pequeno cabrito; atrás do animal cornudo adulto outra imagem, bastante estilizada, lembra a forma humana, como a desenhada pelas crianças, cabeça redonda sobre corpo palito. O casal mítico assemelha-se a animais, bovídeos, sendo bastante evidente o falo em um deles, por oposição, o outro seria uma fêmea. Ambos possuem cabeças alongadas e estilizadas, o macho parece possuir chifres recurvos.

Embora a reprodução não seja muito clara, é o suficiente para se notar que a cabeça da forma humana atrás do grande macho cornudo é representada com os mesmos elementos de algumas vulvas, forma ligeiramente arredondada na parte superior, com afunilamento da inferior, tendendo à forma triangular e com um sulco vertical na parte inferior, que toma metade da forma ovóide. Essa representação, somada ao sexo explícito do outro personagem, posicionado entre o casal e o bovídeo adulto, estabelece uma correlação entre as imagens: o resultado da união do casal mítico tem seu correspondente no posicionamento do casal humano, machos e fêmeas estão posicionados simetricamente, embora o casal humano seja representado frontalmente, ao passo que o mítico está de perfil; entre o casal de humanos encontra-se o bovídeo adulto (em três quartos), suplantando a ambos em tamanho. O macho humano parece ligar com seus braços a redoma/serpente ao bovídeo, enquanto a fêmea humana está sob o que parece ser o rabo do animal e possui tamanho bastante reduzido. As disposições dos elementos nesta imagem sugerem uma “identidade” entre o casal mítico e o bovídeo, dada pela semelhança das formas e da lateralidade/perfil, que se opõe à frontalidade do casal humano, mas ao mesmo tempo, é perceptível um elo tênue entre os opostos complementares: macho/fêmea dos dois casais, cabendo ao humano uma representação extremamente sinedóquica e metafórica a partir do sexo. Teríamos assim um mecanismo de montagem contextual, no qual se estabelece: uma relação narrativa imanente, localizada ao nível de uma “história”: união sexual mítica/vida; e uma relação narrativa-discursiva anafórica entre dois segmentos situados em partes diferentes do discurso, mas que se vinculam como contíguos por se aparentarem como parcialmente iguais e parcialmente diferentes concomitantemente: humano/bovídeo.

A espiral/serpente será um motivo recorrente nas representações parietais e posteriores, geralmente associada ao tempo cíclico das estações. Na gravura de Abiod pode-se conotar a idéia de uma magia de retorno da caça, abundância, com o casal mítico eternamente unido no útero da Terra-Mãe, ou circundado pelo rio/serpente primordial, que com o dessecamento do Saara, passou a ter uma importância ainda maior e exigir uma “magia” particular dos povos privados de água.

Autores: Flávia Regina Marquetti e Pedro Paulo A. Funari

Obra: Sexualidade e Sentimento Religioso no Paleolítico: Narrativas Elementares de Hierogamias entre as Vênus e os Animais.