quinta-feira, 26 de maio de 2016

Egungun, o culto aos ancestrais

Uma característica básica e fundamental de toda espiritualidade, crença e religião é a existência do culto aos ancestrais. Eu tive a oportunidade e a felicidade de encontrar um livro muito esclarecedor sobre o culto do Egungun, um culto desenvolvido pelas religiões da Diáspora Africana.
Com a autorização da editora, eu citarei apenas alguns trechos pertinentes para consolidar o conceito de que o culto ao ancestral é um culto familiar, fator imprescindível para que haja uma tradição, uma comunidade, uma coletividade e uma sociedade.

O culto aos ancestrais Egungun elabora a ancestralidade existencial, a convivência pautada e orientada por valores afro-brasileiros, ou seja, sua cosmogonia; entendendo este valor como o fazer, o sentir, o emocional lucidamente racional, o que torna possível a interação dos homens com a natureza do cosmo.
Este plantar e colher valores são justificados quando, nos festivais públicos Egungun, onde os terreiros, com seus calendários bem organizados, nos dias e meses específicos do ano, destinados aos patronos da religião afro-brasileira de culto a ancestralidade Egungun, vê-se os babá Egun com suas roupas coloridas, que todos chamam  de pai, protetor e ancestral.
Todo legado milenar civilizatório é revertido e hábitos e sistemas educativos, sejam eles institucionais, sejam eles de conduta e costumes domésticos, os quais, nas residências, são chamados de cultura de base.
A tradição e a educação afro-brasileira são também uma herança dos convívios, hábitos, costumes e recriações praticados por antigos moradores e seus familiares, na grane mistura étnica afro-brasileira.
Na essência, a tradição do culto tanto aos orixás quanto aos Egungun está diretamente vinculada à terra, a Onile, senhor do interior da terra que contem os ancestrais, bem como ao seu assentamento, sendo obrigatório em todo terreiro de Egungun.
Na casa de adoração aos antepassados falecidos, tem-se a certeza de que, com as oferendas aos mortos, terão vida longa, para todos os familiares e filhos do terreiro. Em dia de obrigação aos ancestrais, que é consagrado também a Oya Igbale, são feitas oferendas e festas aos Egungun.
Muitos dos povos de nações africanas que foram implantadas no Brasil, ainda hoje sobrevivem nas cidades e no interior, com um legado inconfundível desses antigos povos. Das nações que seus seguidores se fixaram na Bahia, entre o final do século XVIII e o inicio do século XIX, mesmo com a assimilação de nações afro-brasileiras, os nagô/yoruba foram os que mais conservaram a configuração africana original.
Isso significa dizer que sua ideologia, seus mitos, sua cosmogonia, rituais e éticas próprias são voltados, ainda hoje, dentro e fora dos terreiros, para os praticantes e iniciados com parentescos sanguíneos ou não dos dirigentes, os quais convergem e comungam dos mesmos valores. Estes acreditam nas mesmas divindades, sentenciam seu devir dentro da lógica hierárquica de cada terreiro e, portanto, constituem um fazer e acontecer pautado nessa herança, buscando sempre a vida grupal entre pessoas, pois agradar as entidades e viver entre irmãos só é possível reinventando.
Vários símbolos e signos relacionados às manifestações humanas estão estampados em todas as literaturas, orais, escritas, criadas e reinventadas por todas as sociedades, em todo mundo. Literaturas escritas, na sua maioria, definiriam fenômenos sobrenaturais, o sagrado, o divino e o transcendental, assim como o conjunto de rituais de éticas de convivência que derivam dessas crenças chamadas de religião.
O conceito básico e aceito sobre o fenômeno religião vem do latim religio, religare, que denomina um sentido de viver notadamente pela rigidez e pela precisão. Bem como ligar o ser humano a algo superior a si mesmo.
O termo religião, palavra aportuguesada durante séculos, foi usado na Europa pelos povos de língua latina. Termo desconhecido por outras civilizações; reeleger, ligar um Deus a humanidade, ou religar o homem a um só Deus.
O conceito etimológico de religião visto em vários autores, tendo suas concordâncias e discordâncias, faz crer, independentemente da origem, que, no conjunto da sociedade, a crença e a fé fazem a relação com o Deus. Criam-se dogmas de conduta, narrativas que legitimam a criação do mundo, dos seres vivos e da humanidade. Para cada sociedade, há uma forma especial de cultuar suas crenças e suas divindades, estabelecendo uma convivência com direitos e deveres e buscando a sobrevivência da humanidade nos seres humanos.
A experiência dos povos colonizados nas Américas, principalmente os escravizados africanos e seus descendentes, tem demonstrado que, do ponto de vista do crente, mesmo sem uma literatura específica, nem mesmo um código escrito, a tradição se mantem viva através da linguagem própria dos povos de matriz afro-brasileira. Este fenômeno de crer em algo sobrenatural, o mito como verdade, os símbolos, signos e os rituais representam a tradição e o legado cultural da ancestralidade como ancoragem primordial, em que existe a ética da convivência entre seres diferentes, respeitando a alteridade própria, cada um traz em si a sua origem ancestral, sejam, pelo menos amenizados pelo respeito aos ritos, aos Orixás, aos mais velhos da comunidade e aos antepassados Egungun. Os baba Egun dão sentido às nossas vidas, pais nossos que se foram para o mundo do além, orun, e que, quando são solicitados, chegam e respondem aos nossos pedidos e ansiedades humanas.
No entendimento da ancestralidade, a morte não representa simplesmente o fim da vida humana, mas sim que a vida terrestre se prolonga em direção à vida além-túmulo.
O que os resta entender, ou pelo menos divulgar com respeito às tradições, é que sem a ancestralidade não somos nada, não nasceríamos se nossos antepassados não permitissem, por isso, devemos a eles a nossa gratidão, venerando-os e cultuando-os.
O culto à ancestralidade masculina Egungun da religião de matriz afro-brasileira é a reconfiguração no Brasil do culto aos ancestrais africanos e afro-brasileiros. As similaridades e identificações são muitas. A começar pela linguagem. Tanto do lado do Brasil como na África Ocidental, a ancestralidade é um dos princípios da tradição, tradicionalmente central e básica, mesmo na contemporaneidade.
Obviamente, a base da tradição religiosa do afro-brasileiro é a iniciação e o renascer em um novo patamar de relações na cultura familiar comunitária. Seus antepassados ditam as normas da coexistência de uma existência de um poder viver relacionando o seu mundo com o universo.
A entidade Olorun baba Olodumare, que dá o sopro da vida, é o seu poder maior da existência humana. Olorun é o poder maior, junto às forças superiores de outros seres sobrenaturais. Sua vida e sua palavra são valores máximos, atrelados uma à outra. A palavra é a gênese de tudo o que relaciona a vida, o axé, o principio de força e poder, o vínculo de participação e a dinâmica do existir (força, ritual e mito). A palavra e a participação nos rituais comungam para todo o universo conspirar no sentido positivo ou negativo; as oferendas e o sacerdócio seguindo os caminhos designados pela tradição são sagrados e sua palavra é lei.
O afro-brasileiro tradicional que cultua o legado da tradição religiosa de matriz africana não figura apenas em sua memoria o seu conhecimento; ele participa, comuna e distribui esse saber, socializando-o e perpetuando-o para as atuais e futuras gerações, tanto no sentido físico, presencial e material, como no mito da sua comunidade, no sentido amplo, podendo ser visto e entendido, principalmente nos rituais. O sacerdote, portanto, é modelo de dignidade na sua comunidade.
Compreender a ancestralidade afro-brasileira relacionada aos cultos Egungun é tarefa complexa. É preciso participar, observar e vivenciar os ritos em um terreiro, onde os antepassados estão presentes e sua presença é a expressão máxima da crença e de perpetuação da fé. A presença de um ancestral é certeza de emoção a todos aqueles que estão participando do rito. Existe um elo entre o mundo dos vivos, ara-aiye, e o mundo dos mortos, ara-orun, e seus efeitos são imediatos. Tudo é pergunta e resposta ao mesmo tempo; o sagrado é designio de Olorun, pois Ele está presente em tudo que se faz. Atrás de todos os respiradouros do mundo, existe a presença de Olorun. Na energia cósmica que agrupa a fonte da vida, o cotidiano, o solitário e o totalitário no coletivo dos seres humanos está também a presença do Senhor que tudo vê. Essa visão totalizante, assimilada pelo individuo no grupo, é sua forma de ver e entender o mundo.
A tradição é um poder dinâmico que se perpetua através da repetição do ritual. Os mais velhos são auxiliados pelos mais jovens no culto e ambos conectam-se aos valores sociais e morais. O afro-brasileiro de traição não se satisfaz em viver apenas o cotidiano, e sim quer comungar e interpretar o que criou e o que foi criado historicamente para todos, pois o mundo, na sua lógica, é para ser vivido e servido por todos. É preciso vive-o intensamente, espiritual e materialmente, pois tudo foi feito para todos os seres humanos usufruírem.
A lógica desse pensamento é um aprendizado para toda vida, pela forte vivencia em comunidade-terreiro, experiência vivida desde criança, sempre junto aos rituais; o individuo torna-se coletivo em várias iniciações nos ritos. Os antepassados são guias, modelos, fazendo ter sentido o conceito de comunalidade, de sociedade, tornando-os mais atentos às mudanças, disciplinando-os e fazendo com que sigam o respeito aos mais velhos e à hierarquia, afinal o afro-brasileiro de tradição é, acima de tudo, um individuo consciente de sua ancestralidade e do que ela significa no seu dia a dia.

Fonte: Sobrinho, José Sant’Anna, “Terreiros de Egungun, um Culto Ancestral Afro-Brasileiro”, EDUFBA, 2015.

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